sábado, 30 de outubro de 2010

três textos de Frei Beto

DEZ CONSELHOS PARA OS MILITANTES DE ESQUERDA

Frei Betto
 1. Mantenha viva a indignação.
       Verifique periodicamente se você é mesmo de esquerda. Adote o critério de Norberto Bobbio: a direita considera a desigualdade social tão natural quanto a diferença entre o dia e a noite. A esquerda encara-a como uma aberração a ser erradicada.

      Cuidado: você pode estar contaminado pelo vírus social-democrata, cujos principais sintomas são usar métodos de direita para obter conquistas de esquerda e, em caso de conflito, desagradar aos pequenos para não ficar mal com os grandes.

 2. A cabeça pensa onde os pés pisam.
     
      Não dá para ser de esquerda sem "sujar" os sapatos lá onde o povo vive, luta, sofre, alegra-se e celebra suas crenças e vitórias. Teoria sem prática é fazer o jogo da direita.

 3. Não se envergonhe de acreditar no socialismo.
     
      O escândalo da Inquisição não faz os cristãos abandonarem os valores e as propostas do Evangelho. Do mesmo modo, o fracasso do socialismo no Leste europeu não deve induzi-lo a descartar o socialismo do horizonte da história humana.

      O capitalismo, vigente há 200 anos, fracassou para a maioria da população mundial. Hoje, somos 6,1 bilhões de habitantes. Segundo o Banco Mundial, 2,8 bilhões sobrevivem com menos de US$ 2 por dia. E 1,2 bilhão, com menos de US$ 1 por dia. A globalização da miséria só não é maior graças ao socialismo chinês que, malgrado seus erros, assegura alimentação, saúde e educação a 1,2 bilhão de pessoas.

4. Seja crítico sem perder a autocrítica.

      Muitos militantes de esquerda mudam de lado quando começam a catar piolho em cabeça de alfinete. Preteridos do poder, tornam-se amargos e acusam os seus companheiros(as) de erros e vacilações. Como diz Jesus, vêem o cisco do olho do outro, mas não o camelo no próprio olho. Nem se engajam para melhorar as coisas. Ficam como meros espectadores e juízes e, aos poucos, são cooptados pelo sistema.

      Autocrítica não é só admitir os próprios erros. É admitir ser criticado pelos(as) companheiros(as).

5. Saiba a diferença entre militante e "militonto".

      "Militonto" é aquele que se gaba de estar em tudo, participar de todos os eventos e movimentos, atuar em todas as frentes. Sua linguagem é repleta de chavões e os efeitos de sua ação são superficiais.

      O militante aprofunda seus vínculos com o povo, estuda, reflete, medita; qualifica-se numa determinada forma e área de atuação ou atividade, valoriza os vínculos orgânicos e os projetos comunitários.

6. Seja rigoroso na ética da militância.
     
      A esquerda age por princípios. A direita, por interesses. Um militante de esquerda pode perder tudo – a liberdade, o emprego, a vida. Menos a moral. Ao desmoralizar-se, desmoraliza a causa que defende e encarna. Presta um inestimável serviço à direita.

      Há pelegos disfarçados de militante de esquerda. É o sujeito que se engaja visando, em primeiro lugar, sua ascensão ao poder. Em nome de uma causa coletiva, busca primeiro seu interesse pessoal.

      O verdadeiro militante – como Jesus, Gandhi, Che Guevara – é um servidor, disposto a dar a própria vida para que outros tenham vida. Não se sente humilhado por não estar no poder, ou orgulhoso ao estar. Ele não se confunde com a função que ocupa. 

7. Alimente-se na tradição da esquerda.
     
      É preciso oração para cultivar a fé,  carinho para nutrir o amor do casal,  "voltar às fontes" para manter acesa a mística da militância. Conheça a história da esquerda, leia (auto)biografias, como o "Diário do Che na Bolívia", e romances como "A Mãe", de Gorki, ou "As Vinhas de Ira", de Steinbeck.

8. Prefira o risco de errar com os pobres a ter a pretensão de acertar sem eles.

      Conviver com os pobres não é fácil. Primeiro, há a tendência de idealizá-los. Depois, descobre-se que entre eles há os mesmos vícios encontrados nas demais classes sociais. Eles não são melhores nem piores que os demais seres humanos. A diferença é que são pobres, ou seja, pessoas privadas injusta e involuntariamente dos bens essenciais à vida digna. Por isso, estamos ao lado deles. Por uma questão de justiça.

      Um militante de esquerda jamais negocia os direitos dos pobres e sabe aprender com eles.

9. Defenda sempre o oprimido, ainda que aparentemente ele não tenha razão.

      São tantos os sofrimentos dos pobres do mundo que não se pode esperar deles atitudes que nem sempre aparecem na vida daqueles que tiveram uma educação refinada.

      Em todos os setores da sociedade há corruptos e bandidos. A diferença é que, na elite, a corrupção se faz com a proteção da lei e os bandidos são defendidos por mecanismos econômicos sofisticados, que permitem que um especulador leve uma nação inteira à penúria.

      A vida é o dom maior de Deus. A existência da pobreza clama aos céus. Não espere jamais ser compreendido por quem favorece a opressão dos pobres.

10. Faça da oração um antídoto contra a alienação.

      Orar é deixar-se questionar pelo Espírito de Deus. Muitas vezes deixamos de rezar para não ouvir o apelo divino que exige a nossa conversão, isto é, a mudança de rumo na vida. Falamos como militantes e vivemos como burgueses, acomodados ou na cômoda posição de juízes de quem luta.

      Orar é permitir que Deus subverta a nossa existência, ensinando-nos a amar assim como Jesus amava, libertadoramente. 

Frei Betto é escritor, autor de “Batismo de Sangue” (Rocco), entre outros livros.


DESAFIOS À NOVA ESQUERDA

Frei Betto

 O ideário socialista ruiu, vítima de sua pragmática identificação com o progresso material. Lenin enfatizou o socialismo como sinônimo de eletrificação. Os partidos comunistas no poder empenharam-se em desenvolver a infraestrutura de seus respectivos países, porém sem a mesma atenção à formação da sociedade civil, democratização da estrutura política e ampliação do mercado varejista.

 Socialismo deve rimar com emancipação humana, soberania nacional e, sobretudo, felicidade pessoal. No capitalismo, que exalta a competitividade, suporta-se a lógica de que a felicidade de um decorre da infelicidade de muitos. É outra vertente ética, enraizada na solidariedade, que torna o socialismo radicalmente diferente. "De cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo a sua necessidade".

 A esquerda latino-americana é desafiada, agora, a tornar-se menos leninista e mais guevarista. A autocracia partidária cede lugar às emulações morais. Mais leitura de Os manuscritos econômico-filosóficos de Marx & Engels;e menos de 
O capital.

 
A ideologia progressista não pode mais ser reduzida a uma teoria econômica de natureza positivista. O socialismo não pode ser projetado como um capitalismo sem capitalistas. O que significa que não pode ser pautado por padrões de tecnologia e modelos de consumo.

 O resgate da ética, a transparência no trato com a coisa pública, a tolerância nas relações e a intransigência nos princípios, o compromisso efetivo e afetivo com os setores mais carentes da população - eis a condição para uma esquerda que pretenda recuperar sua credibilidade e seu poder de humanização da sociedade.

 O peruano José Carlos Mariátegui, que latinoamericanizou o marxismo, renunciou em seus escritos o culto supersticioso da idéia de progresso. Interessado em superar o positivismo e o determinismo, ele propôs um socialismo como "criação heróica" a partir do povo, tendo ao centro, na América Latina, a questão indígena, o universo camponês, a multidão de pobres, e não o prometeico proletariado industrial. Em suma, mais atenção ao povo e menos rigor na ótica de classe.

 Na atual conjuntura latino-americana, fica descartada a estratégia libertadora centrada na proposta de assalto ao Estado. A Nicarágua sandinista comprovou que, devido à internacionalização do aparelho repressivo, monitorado pelos EUA, antes de apelar para a idéia de força é preciso recorrer à força das idéias. A eleição de Lula e de tantos chefes de Estados progressistas na América Latina são expressões desse novo caminho.

 Não se conquista o aparelho estatal sem antes estar consolidado o apoio de corações e mentes da maioria da população. Não se pode subestimar o sujeito popular: jovens, crentes, donas-de-casa etc. Esses setores não podem ser considerados mera massa eleitoral. Se a esquerda não se livrar do sectarismo e do dogmatismo, permanecerá isolada em suas purezas e certezas, sem condições de elaborar um novo senso comum popular.

 Nem sempre a esquerda partidarizada reconheceu o merecido valor das práticas populares alternativas: lutas por sobrevivência e resitência; denúncias; conquista de direitos; preservação do meio ambiente; relações de gênero, combate à discriminação racial e/ou étnica etc.

 Inútil dar um passo atrás e fixar-se na utopia do controle do Estado como pré-condição para transformar a sociedade. É preciso, antes, transformar a sociedade através de conquistas dos movimentos sociais, e de gestos e símbolos que façam emergir as raízes antipopulares do modelo neoliberal. Combinar as contradições de práticas cotidianas (empobrecimento progressivo da classe média, desemprego, disseminação das drogas) com as grandes estratégias políticas.

 É fazer concessão à lógica burguesa admitir que o Estado é o único lugar onde reside o poder. Este se alarga pela sociedade civil, os movimentos populares, as ONGs, a esfera da arte e da cultura, que incutem novos modos de pensar, de sentir e de agir, modificando valores e representações ideológicas, inclusive religiosas.

 "Não queremos conquistar o mundo, mas torná-lo novo", proclamam os zapatistas. Hoje, a luta não é de uma classe contra a outra, mas de toda a sociedade contra um modelo perverso que faz da acumulação da riqueza a única razão de viver. A luta é da humanização contra a desumanização, da solidariedade contra a alienação, da vida contra a morte.

 A crise da esquerda não resulta apenas da queda do Muro de Berlim. É também uma crise teórica e prática. Teórica, de quem enfrenta o desafio de um socialismo sem stalinismo, sem dogmatismo, sem sacralização de líderes e estruturas políticas. E prática, de quem sabe que não há saída sem retomar o trabalho de base, reinventar a estrutura sindical, reativar o movimento estudantil, incluir em sua pauta as questões indígenas, raciais, feministas e ecológicas.

 Neste mundo sem esperança, só a imaginação e a critividade da esquerda são capazes de livrar a juventude da inércia, a classe média do desalento, dos excluídos do conformismo. Isso requer uma ideologia que resgate a ética humanista do socialismo, abandonando toda interpretação escolástica da realidade e, sobretudo, toda atitude que, em nome do combate à burguesia, faz a esquerda agir mimeticamente como burguesa, incensando vaidades, sonegando informações sobre recursos financeiros, reforçando a antropofagia de grupos e tendências que se satisfazem em morder uns aos outros.

 O pólo de referência das esquerdas, em torno do qual devem se unir, só pode ser um: os direitos dos pobres.

Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da Prisão” (Agir), entre outros livros. 

ATEÍSMO MILITANTE  artigo de Frei Betto

ATEÍSMO MILITANTE
 
Frei Betto 
      No decorrer da campanha presidencial afirmei, em artigo sobre Dilma Rousseff, que ela nada tem de “marxista ateia” e que “nossos torturadores, sim, praticavam o ateísmo militante ao profanar com violência os templos vivos de Deus: as vítimas levadas ao pau-de-arara, ao choque elétrico, ao afogamento e à morte".
      O texto provocou reações indignadas de leitores, a começar por Sr. Gerardo Xavier Santiago e Daniel Sottomaior, dirigentes da ATEA (Associação Nacional de Ateus e Agnósticos).
      Desfruto da amizade de ateus e agnósticos e pessoas que professam as mais diversas crenças. Meus amigos ateus leram o texto e nenhum deles se sentiu desrespeitado ou comparado a torturadores.
      O que entendo por “ateísmo militante”? É o que se arvora no direito de apregoar que Jesus é um embuste ou Maomé um farsante. Qualquer um tem o direito de descrer em Deus e manifestar essa forma negativa de fé. Não o de desrespeitar a crença de cristãos, muçulmanos, judeus, indígenas ou ateus.
      A tolerância e a liberdade religiosas exigem que se respeitem a crença e a descrença de cada pessoa. Defendo, pois, o direito ao ateísmo e ao agnosticismo. Minha dificuldade reside em acatar qualquer espécie de fundamentalismo, seja religioso ou ateu.
      Sou contrário à confessionalidade do Estado, seja ele católico, como o do Vaticano; judeu, como Israel; islâmico, como a Arábia Saudita ou ateu, como a ex-União Soviética. O Estado deve ser laico, fundado em princípios constitucionais e não religiosos.
      Não há prova científica da existência ou inexistência de Deus, lembrou o físico teórico Marcelo Gleiser no encontro em que preparamos o livro “Conversa sobre Ciência e Fé” (título provisório) que a editora Agir publicará nos próximos meses. Gleiser é agnóstico.
      Assim como não tenho direito de considerar alguém ignorante por ser ateu, ninguém pode “chutar a santa” (lembram do caso na TV?) ou agredir a crença religiosa de outrem. Por isso, defendo o direito ao ateísmo e me recuso a aceitar o ateísmo militante.
      Advogar o fim do ensino religioso nas escolas, a retirada dos crucifixos nos lugares públicos, o nome de Deus na Constituição e coisas do gênero, nada têm de ateísmo militante. Isso é laicismo militante, que merece minha compreensão e respeito.
      O Deus no qual creio é o de Cristo, conforme explicito no romance “Um homem chamado Jesus” (Rocco). É o Deus que quer ser amado e servido naqueles que foram criados “à sua imagem e semelhança” – homens e mulheres.
      Não concebo uma crença abstrata em Deus. Não presto culto a um conceito teológico. Nem me incomodo com os deuses negados por Marx, Saramago e a ATEA. Também nego os deuses do capital, da opressão e da Inquisição. O princípio básico da fé cristã afirma que o Deus de Jesus é reconhecido no próximo. Quem ama o próximo ama a Deus – ainda que não creia. E a recíproca não é verdadeira.
      Ateísmo militante é, pois, profanar o templo vivo de Deus: o ser humano. É isso que praticam torturadores, opressores e inquisidores e pedófilos da Igreja Católica. Toda vez que um ser humano é seviciado e violentado em sua dignidade e direitos, o templo de Deus é profanado.
       Prefiro um ateu que ama o próximo a um devoto que o oprime. Não creio no deus dos torturadores e dos protocolos oficiais, no deus dos anúncios comerciais e dos fundamentalistas obcecados; no deus dos senhores de escravos e dos cardeais que louvam os donos do capital. Nesse sentido, também sou ateu.
      Creio no Deus desaprisionado do Vaticano e de todas a religiões existentes e por existir. Deus que precede todos os batismos, pré-existe aos sacramentos e desborda de todas as doutrinas religiosas. Livre dos teólogos, derrama-se graciosamente no coração de todos, crentes e ateus, bons e maus, dos que se julgam salvos e dos que se creem filhos da perdição, e dos que são indiferentes aos abismos misteriosos do pós-morte.
Creio no Deus que não tem religião, criador do Universo, doador da vida e da fé, presente em plenitude na natureza e nos seres humanos.
Creio no Deus da fé de Jesus, Deus que se aninha no ventre vazio da mendiga e se deita na rede para descansar dos desmandos do mundo. Deus da Arca de Noé, dos cavalos de fogo de Elias, da baleia de Jonas. Deus que extrapola a nossa fé, discorda de nossos juízos e ri de nossas pretensões; enfada-se com nossos sermões moralistas e diverte-se quando o nosso destempero profere blasfêmias.
Creio no Deus de Jesus. Seu nome é Amor; sua imagem, o próximo.

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de “Mística e Espiritualidade” (Vozes), entre outros livros.

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