domingo, 9 de janeiro de 2011

Movimentos

8/1/2011
 
Ano de 2010 termina com privatização no SUS
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=39686
 
Em São Paulo, assembléia legislativa aprova reserva de 25% de vagas em hospitais públicos para convênios e planos de saúde. Movimentos planejam questionar lei na justiça.
A reportagem é de Raquel Júnia, da Escola Politécnica de Sáude Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), 06-01-2011.
Eis a reportagem.
Primeiro, foi criada a Constituição Brasileira, em 1988, e com ela o Sistema Ùnico de Saúde (SUS) para atender a todos os brasileiros. Naquela época, os hospitais do SUS eram públicos. Dez anos depois, em São Paulo, foi permitido por lei estadual que a gestão desses hospitais fosse privatizada e eles passassem a ser administradas pelasOrganizações Sociais (OS). Agora, outra vez, pouco mais de dez anos depois, uma modificação na lei permite que leitos e serviços dos hospitais públicos, geridos por OS, sejam vendidos. No dia 21 de dezembro de 2010, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) aprovou por 55 a 18 votos o Projeto de Lei Complementar (PLC) 45 de 2010 , que permite a destinação de 25% dos leitos e atendimentos de hospitais do SUS a particulares e usuários de planos de saúde privados.
A mudança valerá para as unidades geridas por OSs, que, segundo a Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, contabilizam 20 hospitais. O projeto foi enviado à Alesp pelo governo de Alberto Goldman (PSDB/SP) em regime de urgência e ainda precisa passar pela sanção do novo governador. Movimentos sociais ligados à saúde asseguram que questionarão a mudança na justiça e que a proposta fere a Constituição federal.
De acordo com Spina, o processo de aprovação do PLC foi conduzido de forma a impossibilitar a discussão da proposta. "Organizamos manifestações na Assembleia Legislativa, junto com o Sindisaúde, o Sindisprev e outros sindicatos aqui de São Paulo. Sempre que havia perspectiva de votar a proposta, reuníamos as pessoas para estarem na porta da Assembleia. No dia em que foi aprovado o projeto eles inverteram a pauta, votaram primeiro o orçamento, deixaram bem esvaziado o plenário para cansar e aprovar apenas no fim da noite, às vésperas do natal", relata.
O deputado estadual Raul Marcelo (PSOL/SP), um dos que fizeram oposição à iniciativa, reforça a descrição do militante do Fórum Popular de Saúde. "Não houve tempo para nenhuma discussão, foi no apagar das luzes de 2010. Os planos de saúde estão financiando muitas campanhas em São Paulo e aí o lobby é muito pesado na Assembleia", denuncia.
Em 2009, quando outra modificação na lei de criação das Organizações Sociais (OS) da Saúde foi aprovada - a que permite que unidades de saúde antigas também possam ser geridas por OS - também se tentou aprovar uma emenda que garantia a destinação de 25% dos leitos e serviços para particulares e conveniados. Entretanto, na ocasião, o governador José Serra (PSDB/SP) vetou o trecho. "Era período eleitoral e ele [José Serra] teria desgaste, então vetou. Mas, passada a eleição, novamente o PSDB mandou o projeto e é isso o que está acontecendo", analisa Paulo Roberto Spina, do Fórum Popular de Saúde do Estado de São Paulo.
Privilégios no SUS
Em nota , a Secretaria de Saúde de São Paulo respondeu que, com a aprovação da proposta, não haverá prioridade para o público pagante nas unidades de saúde. "A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo esclarece que o projeto de lei complementar nº 45/2010, encaminhado à Assembleia Legislativa pelo governo paulista, de maneira nenhuma significa restrição de atendimento aos pacientes do SUS (Sistema Único de Saúde) em hospitais estaduais, em detrimento dos clientes de planos de saúde. Não é correto, portanto, dizer que os pacientes do SUS poderão perder 25% de suas vagas para os convênios médicos em hospitais públicos estaduais. (...)É importante ressaltar que o projeto, caso seja aprovado, não irá alterar a rotina da prestação de serviços aos pacientes do SUS (Sistema Único de Saúde) nos hospitais estaduais gerenciados porOrganizações Sociais de Saúde. Tampouco haverá qualquer prioridade ao atendimento de usuários de planos ou convênios de saúde", afirma a nota.
Entretanto, para o pesquisador do departamento de medicina preventiva da faculdade de medicina da Universidade de São Paulo, Mario Scheffer, a iniciativa cria o que ele chama de um "apartheid hospitalar dentro do SUS". "As pessoas serão atendidas não de acordo com a sua necessidade de saúde, mas de acordo com a sua possibilidade de pagamento, com a possibilidade de ter ou não um plano de saúde. Isso é muito ruim: passa-se a ter cidadãos de primeira e de segunda categoria nas mesmas unidades do SUS", questiona.
O pesquisador lembra que já há unidades com filas duplas no SUS, como no caso dos hospitais universitários. Ele ressalta que as experiências já existentes mostram que a prioridade de atendimento passa a ser para o público pagante ou conveniado, que tem também um serviço diferenciado de hotelaria. "Além disso, se consegue agendar consultas, exames, internação com bastante antecedência se comparado com os meses de espera para algumas especialidades do SUS", aponta.
De acordo com a mensagem enviada à Alesp pelo então governador Alberto Goldman, a iniciativa tem como objetivo promover o ressarcimento dos planos de saúde ao SUS, já que cerca de 40% da população do estado de São Paulo possui planos. A nota enviada pela Secretaria Estadual de Saúde confirma a justificativa. "Hoje os hospitais estaduais gerenciados por Organizações Sociais de Saúde (entidades sem fins lucrativos) já recebem, espontaneamente, pacientes que possuem planos ou seguros de saúde privados. Mas não há possibilidade legal de esses hospitais cobrarem das empresas de planos de saúde ressarcimento do valor gasto para atender seus clientes. A conta, portanto, vai para o SUS, onerando o sistema", diz o texto. A nota cita ainda como exemplo o caso do Instituto do Câncer de São Paulo (Icesp) e afirma que na unidade cerca de 18% do total de usuários possuem planos de saúde.
Mário Scheffer rebate a afirmação da secretaria de que não há possibilidade legal de os hospitais cobrarem o ressarcimento dos planos de saúde. "Já existe a lei dos planos de saúde [Lei 9.656/1998], que prevê o expediente do ressarcimento ao SUS. Toda vez que um paciente de um plano de saúde for atendido num hospital público, a operadora tem que ressarcir os cofres públicos desse atendimento. O SUS não tem recebido porque aAgência Nacional de Saúde (ANS), que regula os planos de saúde, juntamente com o próprio governo do estado de São Paulo não efetivaram o ressarcimento ao SUS", diz.
Paulo Spina lembra também que em 2010 o Supremo Tribunal Federal determinou que os convênios deveriam cumprir a lei e ressarcir o SUS em nível federal. "Portanto, nós temos mecanismos legais para cobrar do convênio quando a pessoa interna no SUS. Não é preciso fazer uma separação de vagas. Na verdade precisaria que a ANS funcionasse e que não fosse um organismo a serviço dos convênios e dos planos de saúde, mas a serviço dos usuários e do SUS", critica.
Quem ganha e quem perde
Para a Secretaria Estadual de Saúde, quem sai ganhando com a nova legislação são os hospitais públicos, que terão outra fonte de recursos para investimento. Mas para movimentos sociais e pesquisadores que afirmam que a medida é inconstitucional, quem ganha é o setor privado e os planos de saúde. "É mais uma forma de se entregar o espaço público do SUS para o setor privado. Hoje existe um crescimento grande de planos populares, são planos baratos para as classes c e d, em ascensão, com a rede credenciada muito diminuída. E as operadoras que vendem esses planos certamente vão se beneficiar muito ostentando na sua rede credenciada esses hospitais públicos, que são de excelência, e que vão agregar um valor a esses planos medíocres", aposta Scheffer. Além disso, o professor reforça que não está especificado na lei para onde vão os recursos que, de acordo com a mudança, serão pagos pelos planos.
Para além da discussão da constitucionalidade da recente medida aprovada pela Alesp, há uma outra ação na justiça que questiona o próprio modelo de gestão por OS aprovado em São Paulo há mais de dez anos. A Adin 1923 tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) desde 1998. "Infelizmente a ação não foi julgada até hoje. As organizações sociais já são inconstitucionais, serviço público tem que ter servidor público concursado, como diz o artigo 37 da Constituição. Além disso, os princípios do SUS de participação, transparência, equidade e os demais são todos desrespeitados pelas OS's", diz o deputado Raul Marcelo.
Mário Scheffer acredita que a proposta do PLC 45/2010 evidencia também a falência do modelo das OS. O pesquisador destaca que quando a lei das OS foi aprovada, em 2005, os hospitais geridos por elas receberam momentaneamente muitos recursos, mas que hoje, esse montante diferenciado já não está mais disponível para essas organizações. "Esses hospitais tinham grandes privilégios, receberam um financiamento extraordinário, receberam todo equipamento, não tiveram que colocar recursos de custeio, ou seja, foi criada uma vitrine assistencial. Só que passados dez anos, estes hospitais começam a precisar de reformas, de mais equipamentos, de mais pessoal. E os recursos não são suficientes, porque foram investidos recursos muito privilegiados, que as próprias unidades do SUS não tiveram à disposição. Então, o que aprovaram agora é uma lei também no sentido de salvar essa vitrine assistencial do estado de São Paulo", afirma.
O SUS é de todos
Para o Fórum de Saúde de São Paulo, no Brasil como um todo há muito mais recursos no setor privado da saúde, o que impede que o SUS seja de fato universal. "Há uma equação totalmente perversa no investimento em saúde no Brasil, com um investimento muito maior na rede privada do que na rede pública, sendo que apenas 20% da população utiliza a saúde privada. O desejável é que 100% das pessoas utilizem o serviço público, por isso a lei aprovada não se justifica", observa Spina.
Mário destaca ainda que de fato uma porcentagem alta das pessoas que têm planos de saúde acabam recorrendo ao SUS, já que os planos são precários e com várias restrições de atendimento. "Elas entram no sistema porque não conseguem atendimento na rede privada, principalmente nos atendimentos mais caros, de maior complexidade. O SUS atende quase a totalidade dos atendimentos de urgência e emergência, mas também toda a questão dos transplantes, Aids, renais crônicos, atendimentos psiquiátricos", descreve. E reforça: "Esse fluxo de usuário no SUS já existe, mas o SUS é de todos, tem que atender todo mundo que chega até ele. Então, a distorção é anterior, não será isso que irá resolver a distorção, pelo contrário isso só irá aumentar esta diferenciação".
Uma preocupação dos setores contrários à lei aprovada em São Paulo é de que essa mudança passe a valer em outros estados e municípios. Por isso, de acordo com Spina, o movimento intensificará as manifestações em cada unidade onde a lei for implementada, além de questionar judicialmente a medida no Ministério Público. "Os usuários e os trabalhadores da saúde já estão enxergando que a privatização não é solução, que está pior, que o serviço de entrega de remédios, por exemplo, funcionava melhor antes, que o laboratório antes de ser terceirizado funcionava melhor", relata.
Para Mário Scheffer, é preciso também aproveitar que em 2011 uma nova gestão assume o Ministério da Saúde e que será realizada a Conferência Nacional de Saúdepara que a questão seja discutida nacionalmente. "Este debate tem que ser nacional, assim como está sendo o debate das OS e das fundações estatais de direito privado", alerta.

6/1/2011
 
2011: ‘novo’ governo permanecerá na esfera da naturalização da desigualdade. Entrevista com Mário Maestri
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=39633
 
Encerra-se o mandato do primeiro presidente-operário e tem início o governo da primeira mulher eleita presidente do Brasil. Além de primeira mulher, a primeira presidente que o governo antecessor, após duplo mandato, conseguiu levar ao poder em todo o período de ‘democracia’ em nosso país.
 
Este poderia ser o início de uma nova era. Nada indica, no entanto, que o será. E não há nenhuma grande descoberta, e muito menos a tal ‘visão catastrofista’, nesta constatação. Ela é nada mais do que realista, respaldada em pelo menos duas situações relevantes.
 
Em primeiro lugar, respalda-se na avaliação mais profunda - aquela que vai além da citação das melhorias sociais dos últimos oito anos - dos dados estatísticos produzidos sob o governo Lula. Por último, estão aí as já notórias, recorrentes e reiteradas declarações do ‘andar de cima’ da equipe da presidente Dilma. Elas apontam claramente para a preocupação principal que deve rondar o governo: os índices de inflação, com a continuidade da política macroeconômica.
 
O atual quadro, não somente de desigualdade social, mas de deterioração patente das contas externas do país, combinada com a especialização regressiva do país exportador de commodities na divisão internacional do trabalho, não é negado nem mesmo pelos economistas mais conservadores. Não há como alterá-lo sem, no mínimo, reverter o atual modelo econômico do Brasil, de forte abertura financeira. O ‘acordo’ em torno ao crescimento caminha, no entanto, rumo ao clássico processo de ‘modernização conservadora’.
 
E fica uma anotação final. O novo governo, que teve como grande patrocinador o operário que em 2006 se reelegeu sob a bandeira de ácida crítica às privatizações tucanas, ordenou, como sua primeira medida do ano, estampada com alarde nas manchetes da grande mídia, a concessão à iniciativa privada da ampliação de dois dos maiores aeroportos do país.
 
Nosso entrevistado especial para esta primeira edição do ano é o historiador Mario Maestri. Para Maestri, a eleição de Dilma Rousseff no último pleito foi "uma enorme vitória do capital, que avançou seu projeto de reduzir as eleições a uma disputa bipartidária no interior de seu campo".
A entrevista é de Valéria Nader e publicada pelo jornal Correio da Cidadania, 04-01-2011.
Eis a entrevista. 
Qual o seu balanço dos oito anos do governo de Lula?  
O balanço central é a derrota econômica, social, política e ideológica dos trabalhadores, que emergem do período desorganizados e fragilizados na confiança em suas forças, programas, organizações e partidos. Derrota de grande dimensão, enquadrada por mais de vinte anos de refluxo do movimento social no mundo e no Brasil, após a vitória da maré liberal de fins dos anos 1980.
 
Estatísticos apontam crescimento do PIB, do emprego, dos rendimentos, dos reajustes do salário mínimo e do assistencialismo no governo Lula da Silva. Tudo isso resultaria na redução da pobreza e miséria e no crescimento da classe média. Procedem tais propostas?  
O que desperta maior interesse, sociológico e político, é o consenso que tais sandices alcançam, mesmo entre segmentos sociais politizados. O que não pode ser explicado apenas pelo controle quase total da mídia, já que é explícita a precariedade quanto à saúde, moradia, educação, lazer, segurança etc. da enorme maioria da população.
 
Essa imensa credulidade parece dever-se em boa parte à incompletude da revolução burguesa no Brasil, realizada sem a intervenção dos oprimidos. Para enorme parcela dos segmentos médios, a população trabalhadora não é, nos fatos, gente de plena essência e direito. Consideram a situação de super-exploração e sub-cidadania em que vive como inevitável, se não necessária.
 
Vejamos o salário mínimo, o grande vetor de distribuição de renda, no qual o governo propõe ter feito grandes avanços: em verdade, descontado o aumento da produtividade, o concedido foi ínfimo, em valor. O salário mínimo segue sendo arbitrado, pelo governo, de forma impiedosa, radicalmente abaixo de seu valor real, para a alegria dos exploradores grandes, médios e pequenos e miséria dos trabalhadores.
 
Dessa forma, como avalia o processo eleitoral de 2010, que resultou na eleição de Dilma Rousseff?  
Uma enorme vitória do capital, que avançou seu projeto de reduzir as eleições a uma disputa bipartidária no interior de seu campo. O capital manteve os partidos e programas dos trabalhadores fora da audiência e opções populares. Consolidou suas instituições e propostas pró-sistêmicas como únicas alternativas, com a adesão da enorme maioria das direções sindicais, populares, cidadãs.
 
Uma operação que não pode ser explicada apenas devido ao controle da mídia ou como produto da "crise" ou "traição" de direções. A cooptação das lideranças populares nasce também da enorme desorganização e alienação dos trabalhadores no Brasil, que realizaram escassamente sua constituição como classe para si. Entre nós, inexiste largo operariado esperando a direção revolucionária que supere a reformista.
 
A expressiva votação de Marina Silva permitirá constituir uma terceira via ambientalista, ou se trata de fenômeno eleitoral passageiro?  
A senhora Marina Silva foi engana-bobo para o segundo turno. Sua votação foi viabilizada pela cobertura da mídia e pelas revelações sobre a ministra Erenice Guerra, do círculo próximo da senhora Dilma Rousseff. O eco-capitalismo não possui força para conformar pólo político sólido, como registra a despreocupação com ele na formação do atual governo. A verdadeira luta ambientalista é programa reprimido pelo capital.
 
Na formação do novo ministério, destacaram-se as exigências do PMDB por mais postos, a troca de comando no Banco Central, a saída de Amorim das Relações Exteriores, tido como progressista. Como avalia o ministério?  
O ministério nasce senil, repetindo os vícios tradicionais: loteamento partidário; despreocupação com a capacidade técnica dos ministros; descaso com a opinião pública etc.
 
São paradigmáticos o retorno ao Ministério de Minas e Energia do advogado Édison Lobão, que explicou o mega-apagão de 2009 como motivado pelas chuvas e trovoadas, e a entronização do senhor Antônio Palocci na Casa Civil, objeto de incessantes denúncias desde o início de sua vida política institucional.
 
O senhor Celso Amorim apoiou a ocupação do Haiti, as pressões sobre o Paraguai, Equador, Bolívia etc. Eu o definiria como defensor de política mais autônoma, necessária aos interesses capitalistas no Brasil. Seu afastamento, a escandalosa continuidade do senhor Nélson Jobim, após alcaguetar o ministro Samuel Pinheiro Guimarães ao embaixador USA, e a designação do general Carvalho Siqueira, ex-comandante da ocupação militar do Haiti, para o Gabinete de Segurança Institucional, sugerem vontade de aproximação ao governo USA.
 
Manter o Meirelles, moço de recados do capital financeiro, era algemar o governo quanto a qualquer esforço real de redução da taxa de juros, único remédio para superar a valorização do real que mina a economia.
 
Qual a sua avaliação da conjuntura mundial e nacional, quanto à crise de 2008-2009? A economia estabilizou-se realmente, apesar dos países europeus mais fragilizados, como a Irlanda?  
A população européia paga o custo do mega-financiamento do capital bancário e financeiro detonador da crise. Irlanda, Grécia, Espanha, Portugal, Inglaterra, Itália sofrem o peso de radicalização estratégica do confisco de conquistas e direitos já acelerado quando da contra-revolução neoliberal. À exceção da Grécia, a resposta operária tem sido fraca, devido à fragilidade do mundo do trabalho e à falta de política alternativa a essa neobarbarização social geral.
 
As políticas de austeridade − enormes cortes de salários, de investimentos, gastos sociais − minam a frágil retomada da produção no Velho Mundo. Realidade que golpeará também a Alemanha, que exporta sobretudo para a União Européia. É real o perigo de uma segunda onda recessiva, com os governos nacionais agora incapazes de financiar novas medidas anticíclicas.
 
Com a fragilidade econômica USA, a retomada da crise na Europa teria fortes reflexos na China, com conseqüências para a economia brasileira, dependente da exportação de commodities para o mercado oriental. Em tal cenário, os trabalhadores brasileiros perderiam, em um piscar de olhos, as migalhas obtidas no passado período de bonança.
 
Paulo Bernardo, ministro do Planejamento, justifica com o alegado déficit da Previdência o não aumento dos benefícios acima do mínimo. Propõe também política fiscal com despesas correntes primárias − previdência, salários do funcionalismo, assistência social etc. − crescendo menos que o PIB. Devemos esperar duras restrições aos gastos sociais?  
Também no Brasil quem paga as liberalidades governamentais com o grande capital são os trabalhadores e a população. Também aqui já se iniciou a retirada das medidas anticíclicas: aumento da taxa de juro; acréscimo do depósito bancário compulsório; maior exigência para empréstimos de longo prazo; reajuste draconiano do salário mínimo etc. Certamente 2011 será ano de rigor, ainda mais que se espera que a provável expansão econômica minimize as conseqüências do aperto geral. Em 2012, haveria maior liberalidade, devido às eleições municipais.
 
A bancada do PT, PMDB e partidos governistas cresceu e a do PSDB e DEM encolheu. A maioria governamental facilitará um desmonte de direitos sociais ou há uma remota chance de que avancem iniciativas progressistas − reforma agrária, direitos sociais e democráticos?  
A senhora Dilma Rousseff ajoelhou-lhe e pediu perdão pela passada defesa do direito de interrupção da gravidez indesejada, dos direitos dos homossexuais, do direito ao laicismo. Seu governo já está se movendo para trazer o abjeto Joseph Ratzinger ao Brasil, em 2012, a fim de consolidar a vergonhosa aliança explícita com os setores religiosos integralistas e não integralistas. Será uma mulher e ex-combatente que manterá no garrote da arbitrariedade esse direito democrático da mulher e a reivindicação da punição dos criminosos da ditadura!
 
Como nos últimos anos, será o PT − abraçado ao PMDB − que governará em nome do grande capital, com a certeza do apoio do PSDB e DEM, quando a pauta anti-social exigir. Talvez a única grande diferença entre o ex-presidente e a atual é que a senhora Dilma Rousseff não tem base social histórica para preservar.

Como o Brasil enfrentaria nova crise econômica, como a de 2008? Ela seria mais difícil de ser contornada sem Lula, já que Dilma Rousseff não tem a mesma experiência e prestígio político?  
Não creio que o senhor Lula da Silva tenha contribuído pessoalmente para contornar a crise. A economia do Brasil foi golpeada relativamente menos devido a razões estruturais e conjunturais, nem sempre positivas. Não tínhamos créditos imobiliários podres, pois a população não tem condições para financiar a moradia; não havia exposição das finanças familiares, devido à baixa renda popular; possuíamos fortes bancos estatais. Sobretudo, a valorização do real, devido aos juros altos, recuara as exportações industriais e crescera as de commodities, direcionadas fortemente para a China, que manteve seu dinamismo.
 
Nossa situação hoje é talvez pior para enfrentar uma nova crise − cresceu o endividamento familiar, com o escandaloso crédito consignado e a expansão do uso do cartão de crédito, que talvez chegue em 2011 a uns 26% dos gastos familiares.
 
Aumentaram drasticamente os gastos com a subvenção do crédito ao setor produtivo, sobretudo via BNDES. A valorização do real mina a economia. É crível que a senhora Dilma Rousseff encontre condições piores, no caso de nova recessão.
 
Em entrevista ao Correio da Cidadania, o sociólogo Francisco de Oliveira propôs que o governo petista seria mais privatista que o do FHC. Não em função das privatizações sorrateiras via Parcerias Público-Privadas, mas por ter consolidado o "capitalismo monopolista de Estado". Isso lhe parece certo?
  
Não. O governo do senhor Lula da Silva não pode ser mais privatista, pois o de FHCliquidou as jóias da coroa − Siderúrgica NacionalVale do Rio DoceTelebrás, energia, bancos públicos etc. A proposta de consolidação de "capitalismo monopolista de Estado" sugere que o petismo promoveu a superação da dependência semi-colonial do capitalismo brasileiro, metamorfoseando o país em Estado imperialista ou sub-imperialista.
 
O avanço do capital monopólico é fenômeno antigo, que se acelerou no governo FHC, com as privatizações e internacionalizações. O Brasil sedia interesses monopolistas, não necessariamente nacionais, que exigem uma mãozinha do Estado para a conquista-domínio de mercados, sobretudo nas nações vizinhas − PetrobrásBanco do Brasil,BradescoEmbraerGerdauVotorantimJBS-Friboi, empreiteiras etc. Apesar da importância dessas empresas, o Brasil mantém situação marginal na hegemonia capitalista mundial.
 
O Brasil é país de investimentos, e não investidor; é enorme seu handicap no confronto entrada-saída de juros, dividendos, royalties, amortizações etc. A espoliação financeira de nossa economia e sociedade registra o caráter semi-colonial do país, ou seja, sua independência política formal e submissão econômica. Somos país sem autonomia econômica, tecnológica, militar e sem pretensão de conquistá-la.
 
O atual rearmamento das forças armadas visa supremacia sobre nossa população e vizinhos, e não autonomia mundial
. Somos a única grande nação que não possui e não quer possuir a arma atômica, única defesa efetiva diante do imperialismo. O Brasil imperialista ou sub-imperialista é auto-ilusão complacente e envergonhada de nacionalismo pindorama influenciado pelo ufanismo lulista.
 
Apesar da orientação privatista do governo Lula, apoiadores e opositores propõem a ‘retomada’ do papel gerenciador e referencial do Estado na economia, com destaque para o PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento. O que pensa disto?  
Como quer sempre mais, o capital não cessa de acusar o Estado de banquetear-se com os recursos nacionais. No passado governo, não houve esforço algum para nacionalizar as mega-empresas privatizadas, essenciais à gestão estatal. Ao contrário, prosseguiu-se no fim do monopólio da exploração do petróleo; na privatização das rodovias, portos, ferrovias, aeroportos, produção de energia etc.
 
Qual foi a autonomia na fixação da taxa de juro, a pedra de toque da espoliação nacional e popular? Certamente a gerência/controle governamental não avançou no sistema bancário, industrial, educacional etc. Ao contrário, aprofundaram-se a desnacionalização da economia, o avanço relativo da agroindústria, o privatismo selvagem. Se houve dirigismo, seria interessante saber aonde queria chegar.
 
Por necessidade da economia capitalista desenvolvida, o Estado é enorme expropriador e centralizador da renda pública − realidade exacerbada por exigência do capital financeiro. Esse enorme monte de capital é transferido pelo Estado ao capital privado, por diversas vias. É devido a essa função repartidora que o governo se torna reino da corrupção, no Brasil literalmente legalizada pelo mundo político. O PAC é uma super-estrada da redistribuição privada da renda nacional.
 
Qual sua visão sobre a evolução do MST no governo passado e presente?  
MST é a síntese dos paradoxos da esquerda no Brasil. Durante décadas, sua direção propôs a democratização constitucional da propriedade da terra, portanto, com a indenização da propriedade improdutiva expropriada. A esse programa, associou a luta estratégica anti-sistêmica. Essa proposta de "revolução por etapas", primeiro democrático-burguesa, a seguir socialista, consubstanciou-se no programa petista de ampliação gradativa e crescente da democracia política, social e econômica.
 
Com tal proposta, a direção do MST galvanizou ampla base social, satisfeita na luta por naco de terra, e amealhou enorme capital político no Brasil e no exterior. Apenas paradoxalmente, a metamorfose social-liberal do PT, ao avançar na administração do Estado, obrigou a direção do MST a liquidar-se como proposta política; primeiro estratégica, logo tática, para manter-se como direção sindical de pequenos agricultores com e sem terra.
 
É antiga a idéia de democratização-modernização capitalista do campo através da divisão do latifúndio improdutivo, expandindo assim o consumo e a produção pequeno-mercantil familiar. Seguindo sua natureza, a subordinação do campo ao capital deu-se com a liquidação do trabalho vivo, ao introduzir novas tecnologias, maquinarias e insumos. Processo em grande parte patológico, potenciado pela expansão do mercado mundial de alimentos, que enxugou o latifúndio improdutivo, elevou o preço da terra, barateou o preço de produção e o valor unitário da mercadoria agro-pastoril. Com o novo "modelo", a reforma agrária parcelar mostrou-se social e economicamente "não mais viável", em um sentido econômico, como assinalou o dirigente do MST Gilmar Mauro, ao Correio da Cidadania, em 27 de setembro de 2010.
 
A incapacidade de prática auto-sustentada; o encolhimento das terras improdutivas e do apoio social; os recursos necessários às desapropriações, ao apoio à pequena propriedade, ao sustento dos acampados, à manutenção da organização etc. exigiam que a direção do MST mantivesse estreitos laços com o Estado. Apesar da opção cabal pelo agronegócio, o PT prosseguiu com política contemporizadora e compensatória para com a pequena agricultura familiar − Bolsa Família, merenda escolar, financiamento subsidiado e a fundo perdido etc.
 
Essa realidade influenciou a orientação eleitoral do MST nas eleições de 2010?  
A dependência intrínseca ao Estado e ao petismo levou a direção do MST ao rompimento de fato dos vínculos políticos que mantinha com a frágil esquerda classista organizada. Processo que se consubstanciou nas eleições, no apoio implícito à senhora Dilma Rousseff no primeiro turno, e desbragado no segundo, voltando assim as costas a velhos aliados históricos da reforma agrária parcelar, como Plínio Arruda Sampaio, do PSOL. Uma política que contribuiu para a derrota brutal da esquerda e a consolidação das políticas e instituições burguesas no Brasil, como assinalado
.
 
Entretanto, é injusto responsabilizar a direção do MST por não perseguir práticas e objetivos políticos socialistas e classistas em contradição com a própria essência democrático-radical do movimento que impulsiona. Foi a incapacidade da classe trabalhadora desorganizada de ocupar o centro da arena política e orientar os demais segmentos sociais aliados que ensejou a miragem da esquerda de vanguarda rural de pequenos camponeses pautando as soluções estruturais do país.
 
Ao contrário dos trabalhadores industriais inexoravelmente socializados na produção, os camponeses sem terra podem tentar resolver suas contradições pessoais imediatas no contexto da ordem capitalista, com a conquista de gleba para trabalhar. E devem ser apoiados incondicionalmente pelo mundo do trabalho e da democracia, na luta por este direito inalienável, mesmo se mostrando essa estratégia crescentemente aleatória, como assinalado por Gilmar Mauro, na dilacerante declaração ao Correio da Cidadania já citada
.
 
O que pensa da atuação da esquerda socialista nesta eleição, sobretudo o PSOL, PCB, PSTU e PCO?  
A assinalada vitória da contra-revolução mundial arrasou conquistas históricas do mundo do trabalho, com destaque para as organizações sindicais e políticas. Partidos fortíssimos, como os partidos comunistas francês e italiano, meios da resistência, apesar do colaboracionismo que praticavam, dissolveram-se como sorvete sob o sol. A despolitização, derrotismo, conservadorismo etc. dominaram multidões de trabalhadores das nações de capitalismo avançado.
 
No Brasil, o golpe foi terrível, devido à tardia e frágil conformação político-sindical dos trabalhadores que emergiram da escravidão, havia pouco mais de um século. A banda podre do Partidão, travestido em PPS, pôs-se a serviço do conservadorismo; o PC do B fez o mesmo, com alguma compostura. Nascido das vigorosas lutas operárias da segunda metade dos anos 1970, o PT avançou por poucos anos a luta pela autonomia operária, antes de receber do capital a direção do país, já como partido social-liberal.
 
As direções militantes e políticas da esquerda foram também golpeadas pelo período regressivo, fato agravado pelas superficiais raízes históricas; frágil implantação em operariado desorganizado; extração social, sobretudo estudantil e profissional. Tudo isso, somado à frágil formação e experiência das direções e da militância, criou e cria uma forte dissociação entre aparência e essência, um indiscutível hiato na realização efetiva da auto-proclamação como vanguarda
dos trabalhadores.
 
É muito difícil ensaiar balanço mesmo telegráfico da atuação eleitoral dos grupos que se reivindicam anti-sistêmicos. Hoje, me auto-critico pela expectativa subjetivista da construção de frente, com programa classista, viabilizada pela magnífica vitória da pré-candidatura de Plínio Arruda Sampaio. Uma frente de esquerda pela base que reagrupasse política e organicamente a esquerda classista organizada e dispersa, na procura da construção de instrumentos e espaços para uma efetiva apresentação-concretização, mesmo embrionária, do programa do trabalho.
 
Não houve ainda um balanço efetivo, pelas direções dos partidos de esquerda com registro eleitoral, da verdadeira organização da derrota histórica que sofremos − menos de 1% dos votos, todos somados. Hecatombe acrescida do apoio à senhora Dilma Rousseff pela maior parte do PSOL e pelo PCB
.
 
Quais são as perspectivas da Esquerda nos próximos anos? Acredita que deva ou possa ser reconstituída uma frente de esquerda?  
Pelas razões assinaladas, mantendo-se as tendências atuais, creio que, caso ocorra uma frente de esquerda em 2014, ela possivelmente terá um sentido meramente eleitoreiro, como em 2006. Não deixará rastro quanto à construção da esquerda classista que necessitamos. Marx propôs que a emancipação dos trabalhadores devia ser necessariamente obra dos trabalhadores. Creio que sem salto qualitativo, mesmo exemplar, das lutas dos trabalhadores no Brasil ou no mundo, a tendência da esquerda no Brasil seja regressiva, ainda que avance parlamentar e numericamente.
 
O cenário nacional não é radioso, com o enorme colaboracionismo e governismo das organizações e direções sindicais e populares e com a impressionante desorganização e alienação dos trabalhadores. Internacionalmente, a tendência é também regressiva: avanço da restauração capitalista em Cuba; colaboração entre os governos da Venezuela e Colômbia; medidas antipopulares na Bolívia; isolamento do esforço titânico dos trabalhadores na Grécia; perda incessante de conquistas populares etc. Um duro cenário que exige um enorme esforço de ação e reunificação da vanguarda organizada e dispersa.
 
A idéia da história como linha circular onde, ao se perder o ônibus, paga-se apenas um bilhete mais caro no próximo, embota a consciência do drama atual. Os tempos esgotam-se e o declínio da humanidade é hoje tendência mais factível que a sua necessária superação socialista. Temos que nos apressar para não perdermos a última condução: a barbárie não é mais promessa e já se aninha perversa entre nós.


6/1/2011
 
A radicalização do capitalismo. Entrevista com Jacques Julliard
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=39574
 
É a contratação midiática do ano: Jacques Julliard, figura destacada do semanárioNouvel Observateur, se converte agora no editorialista de Marianne, outro semanário político. Julliard nos explica seu desencanto com o semanário da segunda esquerda [1], ao que considera agora demasiado liberal e insuficientemente radical, e nos fala de religião, dinheiro e Marx.
A reportagem é de Sébastien Lapaque, publicada na revista Témoignage Chrétien e republicada no sítio Rebelión, 20-12-2010. A tradução é de Anne Ledur.
Não se pode ser sério quando se tem 77 anos. A figura histórica da segunda esquerda rocardiana, ex-líder do sindicato CFDT, Jacques Julliard, anunciou em novembro que deixava o Nouvel Observateur, onde escrevia há três décadas, e que havia sido contratado por Marianne, onde escreve uma coluna semanal desde o dia 1º de dezembro.
Na raiz dessa ruptura, um desacordo cada vez maior com a linha editorial do grande semanário da esquerda intelectual. Em agosto de 2009, exasperado com a complacência do semanário com o Eliseu, Jacques Julliard, recordou “a necessidade de uma democracia social de combate” em lugar do que considerava “a democracia social como linha de vinco da burguesia e dos negócios”.
Meses mais tarde, supreendeu a todos com a publicação em Libèration de Vinte teses para voltar com o pé esquerdo, em que explicava que “a esquerda não pode estar representada em eleições presidenciais por um membro do establishment financeiro”, no qual manifestava seu escasso entusiasmo com a candidatura de Dominique Strauss-Kahn.
Essa repentina volta atrás é incomum, além disso, alentadora. Significa talvez queJulliard, que há dois anos publicou um livro titulado L’Argent, Dieu et le diable ("O dinheiro, Deus e o diabo", em tradução livre)(Flammarion, 2008), está de volta à febre e ao fogo de sua juventude católico-proudhoniana? Sem dúvida, é alentador ver que ainda existem homens neste país que entendem que o pensamento só é interessante se for mutável.
Eis a entrevista.
Há dias em que ler o jornal de manhã é um exercício deprimente. Ficamos sabendo que os países são inadimplentes, que os bancos estão quebrando, que a zona do euro está a ponto de estourar. Mas essa sucessão de desastres, desde a crise asiática de 1997, não é profundamente estimulante do ponto de vista intelectual? É, talvez, uma das virtudes dessa inesperada crise do capitalismo que nos obriga a repensar o mundo?
Isso é o que tratei de explicar no meu artigo Vinte teses para voltar com o pé esquerdo, publicado no Libération, de janeiro. Um dos acontecimentos me fizeram evoluir da posição que eu tinha. Durante muito tempo, acreditei, e não me arrependo, que o capitalismo estava civilizando-se, pela influência dos acontecimentos da Guerra e a Liberação [2], mediante um compromisso histórico entre os patronos e as forças sociais progressistas.
Isso trouxe 30 “anos gloriosos”, não nos esqueçamos. E deu lugar a uma série de instituições, tais como o Plano, reinventado por De Gaulle, que tinha por objeto uma espécie de diálogo social. Mas a crise de 2008 revelou o que já sabíamos há muitos anos: que um capitalismo de acionistas e proprietários indiferentes ao compromisso social havia sucedido ao capitalismo de gestores do pós-guerra.
Os imperativos da rentabilidade financeira imediata puseram fim ao diálogo social e a qualquer forma de relação com os sindicatos. Parte da esquerda, entre outras aquela a que eu pertencia, não soube renovar suas análises com rapidez suficiente, nem constatar que a situação havia mudado. Não se trata de saber se somos reformistas ou não: para ser reformista, tem que ser dois.
Pois bem, a segunda esquerda seguiu sendo reformista e moderada, enquando que seu interlocutor, o capitalismo, se radicalizou por completo e se converteu em outra coisa. Para mim, é essa a grande lição da crise. E o que veio depois só a confirma: nem sequer as forças de direita têm um mínimo controle do aparato financeiro e bancário que lhes permita impor normas prudenciais.
Temos visto com clareza como o G-20 não tem conseguido impor sequer um indício de controle, simplesmente porque o G-20, por mais poderoso que seja, é muito menos que os bancos dos países que formam o grupo. Como não tirar conclusões? O segundo acontecimento que me fez pensar é o referendo de maio de 2005 sobre a Constituição da União Europeia.
Eu estava a favor do “sim” e sigo estando. Entretanto, não havia conseguido analisar as razões que impeliram a maioria dos franceses a votar “não”. Essas razões não eram todas antieuropeias, longe disso. Os franceses não votaram “não” porque não quiseram a Europa e, sim, porque não queriam esta Europa. Não só os entendo como, em grande medida, creio que tinham razão de votar contra o liberalismo. De minha parte, votei “sim”, pensando que era a Europa liberal, mas seguia sendo Europa.
Você pertence a uma escola de pensamento que acreditou que a superação das soberanias nacionais permitiria uma transferência de soberania a uma entidade política mais ampla. Entretanto, a soberania nacional abolida em escala nacional não se reconstruiu em escala europeia. Não era, talvez, o objetivo pôr fim a toda forma de intervenção política?
Era esse o objetivo? Não sei. Em qualquer caso, os efeitos não foram esses. Não obstante, se bem é de lamentar que a Europa não exerça nenhuma forma de soberania sobre os mercados financeiros, devemos entender que um Estado-nação também não teria nenhuma opção, salvo a de condenar-se à recessão.
No Estado atual de minha reflexão, creio que é preciso que esqueçamos se votamos “sim” ou “não” no referendo de 2005. Frente a um capitalismo que seguirá sendo internacional, devemos deixar de lado o que divide os soberanistas e os federalistas. Estamos em uma nova situação, que implica uma nova análise do capitalismo e uma reconstrução europeia de novo cunho.
A construção da Europa passou por vários períodos. Houve a Europa de Jean Monnet, que foi uma Europa construída entre países relativamente iguais e que deu alguns resultados.
A essa sucedeu a Europa de Margaret Thatcher, em que se impediu a constituição de um vínculo federal, devido a essa espécie de arma de destruição em massa, que tem sido a ampliação Comunidade Europeia por a toda a Europa geográfica. Era evidente que uma moeda comum em países tão diversos como AlemanhaGrécia e Irlanda resultaria em qualquer crise. É o que estamos presenciando.
Em 1992, Philippe Séguin [3] havia feito desse risco de choques assimétricos um de seus argumentos mais consistentens contra o Tratado de Maastricht e a criação de uma moeda única. Como foi possível passar por alto esse argumento nesse momento?
Porque eu estava convencido de que não havia marcha atrás. A Europa não poderia parar. Na realidade, a construção europeia terminou com o Tratado de Maastricht. Gostemos ou não, esse foi o último ato.
Não se trata de voltar atrás, mas encontrar a maneira de que o poder político exerça um poder sobre a economia. Por que não imaginar, por exemplo, a nacionalização das agências de qualificação em escala europeia? A Europa não seria um âmbito de atividade financeira suficientemente importante para impor normas próprias?
Sim, você pode realocar esses organismos perversos que são as agências de qualificação por outros, mais saudáveis, concebidos em escala europeia. Entretanto, ele não impediria aos outros de seguir operando em escala internacional. E como o dinheiro circula em alta velocidade por todo o mundo, não poderia evitar os ataques da especulação chinesa, hindu ou brasileira às bolsas europeias...
Imagino um governo de esquerda que não hesite em adotar determinadas medidas protecionistas.   Levando-se em conta a intercomunicação das economias, se a França perdesse sua qualificação de AAA, já não disporia da solução de fechar suas fronteiras. Esse vinco seria um retorno à Idade da Pedra. Para isso, é preciso superar o enfrentamento teórico entre os soberanistas e os federalistas para encontrar uma solução que nos permita controlar os movimentos de capitais, sempre dentro da economia mundial. Retirar-nos do jogo mundial significaria retirar-nos da História.
Mas até que ponto a política é capaz de recuperar o controle? Mais adiante dos confrontos teóricos? Como fazer possível o seu regresso?
Essa é a questão. Na atualidade, existe um amplo acordo, que vai da direita à esquerda, para não falar da extrema esquerda, que considera que a política deve recuperar o controle e a supervisão das finanças. Mas qual pode ser o instrumento dessa recuperação? Estimo que os Estados já o têm, e que o G-20 terminou em fracasso: os banqueiros venceram.
Sem pretender que as pessoas saiam à rua de forma regular, ou ser um bousculeur, como dizia Proudhon, creio que só mediante uma mobilização popular e um apoio da população se poderá reiniciar essa superioridade da política. Em minhas Vinte e seis teses..., quando expresso meu desejo de uma ampla coalizão, faço um chamamento a uma concentração que modifique o equilíbrio de forças em escala internacional.
Fale-nos de seu percurso intelectual. Ser companheiro de viagem da segunda esquerda não faz com que você contemple a intervenção da autoridade pública, seja nacional ou europeia, com certo receio, e que recorra à sociedade mais que à política?
Sigo me considerando da segunda esquerda na medida em que acho necessário, ao mesmo tempo, que o político predomine sobre a economia e que a sociedade predomine sobre a política. Não confio nas finanças, mas também não confio no aparato político para governar a sociedade. Vivemos em sociedades que têm se tornado adultas e nas quais os indivíduos já não querem ser governados de cima pelas autoridades instituídas.
É preciso ter em conta essa novidade que representa a vontade de independência dos indivíduos e dos grupos com relação às instituições, sejam nacionais ou transnacionais. Desse ponto de vista, o problema é assegurar o vínculo entre as pessoas – a sociedade - e a política. Pois bem, esse enlace se encontra em processo de dissolução. Estamos de acordo em nosso desejo de restaurar a política, mas as pessoas já não querem isso. Estão equivocadas, não veem que é uma sociedade sem Estado, sem política. Não medem o risco.
Contudo, estamos obrigados a ter em conta que sua principal reivindicação é a de autonomia... É magnífico, do ponto de vista da emancipação do indivíduo, mas é, ao mesmo tempo, apavorante. Ao emancipar o indivíduo, se emancipam também os grupos que hoje já não querem mais Estado. Pois bem, o grande mérito do Estado é a submissão desses grupos.
Mas é realmente o momento de defender a sociedade contra os abusos do Estado? Essa suspeita com relação ao Estado considerado como un Moloch é, sem dúvida, fundamental para a doutrina social da Igreja...
Esse é um ponto comum entre a Igreja e a anarquia...
Sim, mas a anarquia hoje é o capitalismo. Então necessita passar pelo Estado para destruir a sociedade. Já não passou de moda uma determinada desconfiança antitotalitária com relação ao Estado?
Levar a cabo uma luta política é sempre tomar a iniciativa contra o inimigo principal, o que não quer dizer que nos esqueçamos dos inimigos secundários. O enfoque da segunda esquerda consistiu em apoiar-se em ocasiões, em grupos sociais às vezes hostis ao Estado, porque o Estado nos parecia um instrumento de paralisia da sociedade e um obstáculo para a realização individual. É por essa razão que me vinculei a Maio de 68, ainda que com moderação, mas muito firme nas propostas contra o Estado.
Dito isso, já afirmei desde o começo aos amigos, como Edmond Maire, que havíamos subestimado o papel do Estado na política. É uma evolução já antiga em mim. Cheguei à conclusão de que o Estado, que era nosso principal inimigo de ontem, hoje é nosso aliado contra os fermentos de destruição da sociedade, que se encontra no sistema bancário e econômico.
Também me parece que a democracia social, que afirma que está morta, nunca esteve tão viva como a esperança em escala internacional. O que esperam os trabalhadores chineses? Proteção. E, para tanto, uma democracia social que necessariamente passa pelo Estado.
Nos anos 1970 e 1980, quando a sociedade de mercado estava tratando de conseguir a metamorfose da que hoje medimos os resultados, não era bastante ingênuo exigir uma maior autonomia e subsidiariedade para os organismos intermediários? A crescente autonomia das comunidades não fez a cama do comunitarismo?
Com relação ao comunitarismo, eu estive logo alerta. O sindicato CFDT, que era meu lugar de reflexão intelectual, não era comunitarista. Ao contrário, preconizava a planificação democrática, o que é bastante diferente. Mas o debate democrático se complicou por um debate sobre a mobilidade da população. Isso escureceu o problema. Entre as comunidades antigas e as novas, que querem fazer valer legitimamente sua presença, a relação com a autoridade do Estado não é a mesma. Nesse contexto, é importante recordar que o Estado é um elemento essencial e que não é uma federação de comunidades.
Por haver nascido em uma família de tradição jacobina, sem dúvida, tive a vontade de ir contra a corrente do estatismo, mas não até o ponto de querer dissolver o Estado. O erro do marxismo-leninismo é ter nos apresentado o Estado como um instrumento das classes dominantes para a opressão das subordinadas. É uma derrota do marxismo, hoje, a constatação de que o Estado é um instrumento de defesa das classes dominadas contra as classes dominantes, que atuam sobre o Estado para destruir a sociedade.
Ao mesmo tempo, estão ocorrendo hoje, no mundo ocidental, coisas tão grotescas que podem ser interpretadas baseando-se em categorias marxistas que antes nos fazia rir. Como não ver, por exemplo, que estamos assistindo a um retorno da luta de classes?
Nas minhas Vinte teses…, me refiro a Marx, e, em particular a seu livro A luta de classes na França, batendo o pé em que modelo que podia parecer-nos obsoleto, que podia parecer-nos excessivamente mecanicista nos trinta gloriosos funcionaria de novo.
Passemos de Vinte teses… à sua coleção de ensaios titulada L’Argent, Dieu et le diable, em que você analisa a relação de Charles Péguy, Paul Claudel e Georges Bernanos com o mundo moderno. Nesse livro, se pergunta sobre a lenta destruição do conjunto de valores pré-capitalistas em que as sociedades modernas seguem se baseando e impedem a absorção de todas as coisas por dinheiro. Para restaurar esses valores, se necessitaria a fé, tanto no sentido individual, como coletivo. Mas, como é possível fazê-lo em um mundo onde, como disse Bernanos, a ansiedade substituiu a fé?
A superioridade do catolicismo frente a outras formas de cristianismo é, precisamente, que concebe a fé em caráter coletivo. O que sempre me faz rir, na visão protestante do mundo, é esse tipo de colóquio singular entre cada indivíduo e Deus. Em termos políticos, a força do catolicismo é ter a visão de um destino coletivo da Humanidade. Na medida em que hoje temos a necessidade de ir mais além de nossa visão individualista, o pensamento católico é uma ajuda. Desse posto de vista, essa religião é completamente moderna, é um dos melhores instrumentos de luta contra a dissolução individualista da sociedade.
Para ser justos, devemos recordar que nos Estados Unidos, um país de cultura protestante, estamos assistindo um regresso inesperado da filantropia, onde vemos homens como Warren Buffett desapegar-se de riquezas ao anunciar que dará 99% de sua fortuna para obras...
Isso é certo. E procede do mais puro calvinismo. Eu gostaria de conhecer os sentimentos religiosos de Warren Buffett e seus amigos multimilionários. Na tradição protestante, o dinheiro vem como um presente de Deus, mas também pensam que esse dinheiro deve voltar a Deus, a suas criaturas. Isso reflete um desejo de lutar contra a apropriação individual. Entendemos mal o que Max Weber em A ética protestante e o espírito do capitalismo, ao interpretar sua tese como a valorização de uma espécie de harmonia preestabelecida entre Deus e o êxito material no pensamento protestante.
Em troca, até entre os puritanos dos EUA, o papel da religião é lembrar ao homem que ele não possui a propriedade que ele adquiriu. Ser rico é ter responsabilidade. Deste ponto de vista, a visão filantrópica está muito menos distante de um catolicismo social que se pode imaginar. A riqueza pode ser uma bênção, mas à condição de que se faça dela um uso não egoísta ou puramente hedonista, e sim, social.
Notas:
1. Corrente ideológica da esquerda francesa formada por membros da democracia social e de outros gurpos de esquerda franceses, formulada no Congresso de Nantes (1977), do PS, por Michel Rocard, desde então principal figura da corrente. Outros representantes são Pierre Mendès-FranceGilles Martinet, o próprio Juillard, etc.
2. Na França, esse termo político, sem qualificações e em maiúscula, se refere sempre ao movimento que culminou com o final da ocupação da França pelas tropas nazistas e o desaparecimento do regime colaboracionista do marechal Pétain, em 1944.
3. Ministro gaullista de Assuntos Sociais e Emprego durante o primeiro governo de coabitação (gaullistas, socialistas), de 1986 a 1988.



6/1/2011
 
''É preciso um Nuremberg dos especuladores''. Entrevista com Jean Ziegler
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=39614
 
Diplomata internacional na ONUZieglerpublicou o ensaio El odio a Occidente, uma crítica ao sistema capitalista dominado pelaEuropa e pelos EUA.
A reportagem é de Guillaume Fourmont Madrid, publicada no sítio Publico.es, 29-12-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Que ninguém se deixe enganar pelo seu cargo muito oficial de membro do Comitê Consultivodo Conselho de Direitos Humanos da ONU. Por trás de seus óculos de professor de universidade, o suíço Jean Ziegler (Thoune, 1934) é um revolucionário. Ele gosta de provocar e gritar o que os seus colegas diplomatas não ousam dizer nem nos corredores das organizações internacionais.
Um exemplo: "Uma criança que morre de fome hoje em dia é um assassinato". Outro: "Somos democracias, mas praticamos um fascismo exterior". Ziegler é um argumento que argumenta cada frase com números ou citações de grandes intelectuais, como esse grito de dor do poeta anticolonialista Aimé Césaire: "Vivo em uma ferida sagrada / Vivo em um querer obscuro / Vivo em um longo silêncio".
Dessa ferida, Ziegler falar em seu último livro, El odio a Occidente (Ed. Península), um título que responsabiliza os países desenvolvidos pelos males do mundo. O escritor não perde a esperança e aspira a uma "revolução para acabar com a ordem canibal do mundo". Na capa do seu ensaio, a letra "i" da palavra ódio é uma bomba com detonador. Resta só um segundo para que ela exploda.
Eis a entrevista.
O mundo vai tão mal assim?
Jamais na história um imperador ou um rei teve tanto poder como o que a oligarquia do poder financeiro possui na atualidade. São as bolsas que decidem quem vive e quem morre. Doze bilhões de pessoas podem comer, o dobro da população mundial. Mas a cada cinco segundos, uma criança menor de 10 anos morre de fome. É um assassinato!
É daí que vem o ódio do qual o senhor falar? Por que nos odeiam?
É preciso distinguir dois tipos de ódio. Um, primeiro, patológico, como o da Al Qaeda, que assassina inocentes com bombas. Mas nada justifica essa violência, nada! E o meu livro não trata disso. Refiro-me a um ódio meditado, que pede justiça e compensação, que chama a romper com o sistema estrutural do mundo, dominado pelo capitalismo.
Não aprendemos nada com a crise?
Lições? É pior ainda: esses bandidos de especuladores que provocaram a crise e a quebra do sistema ocidental atacam agora produtos como o arroz e o trigo. Há milhares de vítimas a mais do que antes. É preciso sentar esses especuladores na cadeira. É preciso realizar um Nuremberg para eles!
O senhor trabalha na ONU. Não acredita no papel da comunidade internacional?
O mero fato de que a comunidade internacional seja consciente dos problemas do mundo é positivo. Os Objetivos do Milênio não se cumpriram, mas não sou uma pessoa cética.
Não acredita, no entanto, que o Ocidente só se interessa pelo Ocidente e que mantém o Terceiro Mundo na pobreza de propósito?
É verdade! Mas não se trata de doar mais, mas sim de roubar menos. Na África, podem-se encontrar produtos europeus mais baratos do que os locais, enquanto que as pessoas se matam trabalhando. A hipocrisia dos europeus é bestial! Nós geramos fome na África, mas quando os imigrantes chegam às nossas costas em balsas os mandamos embora. Para acabar com a fome, é preciso uma revolução!
No Ocidente? Isso é possível?
A sociedade civil se despertou. Há movimentos como AttacGreanpeace e outros que fazem uma crítica radical da ordem mundial. No Ocidente, temos democracias, mas praticamos um fascismo exterior. Embora não haja nada impossível na democracia. "O revolucionário deve ser capaz de ouvir a grama crescer", disse Karl Marx.
Em seu livro, o senhor fala da Bolívia de Evo Morales como exemplo.
É um caso exemplar. Pela primeira vez na história, o povo boliviano elegeu como presidente um deles, um indígena aimara. E, em seis meses, expulsaram as empresas privadas que ficavam com todos os benefícios das energias do país. O governo pode, com esses milhões ganhados, lançar programas sociais, e a Bolívia é agora um Estado florescente e, principalmente, soberano. Veja, não sou um ingênuo, mas na Bolívia a memória ferida do povo se converteu em uma luta política, em uma insurreição identitária.
Em outros termos, Morales merecia mais o Nobel da Paz do que Obama.
Claro! O Nobel de Obama era ridículo, era una operação de marketing.
Obama não trazia consigo nenhuma esperança?
Ver uma cara negra de presidente dos Estados Unidos na capa de grandes revistas foi incrível, principalmente porque o bisavó da esposa de Obama era um escravo. Mas é só um símbolo. O império norte-americano é três coisas: a indústria armamentícia, Wall Street e o lobby sionista. Obama sabe que se tocar em algum dos três está morto. E não vai fazer isso. A esperança vem da sociedade civil. Se conseguirmos criar uma aliança planetária de todos os movimentos de emancipação, do Ocidente e do Sul, então haverá uma revolução mundial, uma revolução capaz de acabar com a ordem canibal do mundo.



A política que nasce do rio da memória. Entrevista com Jean Ziegler
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=30805
 
A lembrança dos sofrimentos causados pelo colonialismo alimentou o crescimento e a ação dos movimentos sociais no Sul do mundo, afirma o estudioso suíço Jean Ziegler, por ocasião da publicação de seu livro "L'odio per l'Occidente" [O ódio pelo Ocidente].
A reportagem é de Benedetto Vecchi, publicada no jornal Il Manifesto, 16-03-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A leitura de livros de Jean Ziegler sempre produz dois sentimentos. De um lado, são textos tranquilizadores, porque ilustram um mundo já conhecido, isto é, atravessado por conflitos por causa da apropriação dos recursos, políticas de rapina do Norte do planeta com relação ao Sul do mundo. Mas induz também um sentimento de indignação, de raiva, alimentando um forte desejo de acabar com um mundo sempre à beira de uma guerra civil planetária, de maior ou menor intensidade.
Em "L'odio per L'Occidente" (Ed. Marco Tropea), Ziegler analisa as relações internacionais à luz daquela "memória ferida", cuja elaboração conseguiu se transformar em ação política na América Latina, como testemunham as eleições à presidência de personagens como Evo Morales, mas se poderia acrescentar, com todas as especificidades e contradições do caso, Hugo ChávezLuiz Inácio Lula da Silva e outros expoentes políticos uruguaios e paraguaios do chamado "Renascimento latino-americano".
Eis a entrevista.
No seu último livro, o senhor escreve a respeito de um difundido sentimento de ódio antiocidental. É claro que o Ocidente é uma categoria genérica que pouco ajuda a compreender o mundo em que vivemos. Mas lendo o livro, parece que o ódio deu vida a uma oposição de uma concepção dominante da sociedade e das relações entre os Estados.
Existem duas tipologias de ódio com relação ao Ocidente. Existe o ódio do fundamentalismo islâmico, naturalmente, mas é mais significativa, ao invés, a segunda tipologia de ódio, que podemos qualificar como ódio racional e que atinge três diferentes frentes. Existe a memória do sofrimento causada pelo colonialismo e pela escravidão. Memória que, nestes últimos anos, se transformou em consciência política por meio da reivindicação de identidades coletivas negadas pelo colonialismo. É como se um rio subterrâneo surgisse com força contra as políticas predatórias do grande capital financeiro. Vivemos em um mundo onde a cada três segundos uma criança abaixo dos 10 anos morre de fome. No fim deste dia, mais de 47 mil pessoas terão morrido por fome, enquanto um bilhão de homens e mulheres continuarão sendo desnutridos. E tudo isso ocorre na presença de uma oligarquia que continua acumulando riqueza e lucro.
A segunda fonte do ódio reside, ao invés, na hipocrisia de muitos países ocidentais quando falam de direitos humanos, que devem ser impostos também com a força, mas que não valem para as empresas ocidentais. A Europa e os EUA armaram exércitos, fizeram guerras, decidiram sanções internacionais, instituíram tribunais internacionais para o respeito dos direitos humanos. Mas se um primeiro-ministro, um chefe de Estado, um general ocidental é acusado de crimes de guerra, estoura o pedido da impunidade. É a política da dupla verdade: o que vale para o Sul do mundo não deve valer para o Norte do planeta.
A terceira fonte do ódio está na expropriação das riquezas naturais por parte das multinacionais. Tomemos o exemplo da Bolívia de Evo Morales. Pela primeira vez depois de 500 anos desde a conquista da América Latina, um índio, um cocaleiro, foi eleito presidente. Isso não teria sido possível se não houvesse a transformação da memória histórica da opressão colonial em consciência política. Gosto de lembrar uma frase do jornalista e estudioso Regis Debray, segundo o qual "a memória é revolucionária". Tudo isso é muito misterioso, mas também fascinante.
Agora nos desloquemos de continente e vamos a um país que está perto tanto da Suíça, onde eu vivo, como também da Itália. Em dezembro de 2007, Nicolas Sarkozy esteve na Argélia para ratificar e negociar contratos comerciais entre os dois países. Durante um jantar oficial, o presidente argelino Abdelaziz Bouteflika tomou a palavra para pedir a Sarkozy, enquanto presidente da França, que apresentasse as desculpas do seu país pelo genocídio cometido pela legião estrangeira na cidade de Setif, quando, em maio de 1945, foram mortos milhares de argelinos (alguns historiadores dizem que foram 45 mil), justamente no dia em que, na Europa, o exército nazista era derrotado. A resposta de Sarkozy foi terrível: "Eu não vim por causa da nostalgia". A réplica de Bouteflika foi dura: "A memória antes dos negócios".
Desde então, os acordos que deviam ter sido ratificados foram congelados, e, no ano passado, o presidente argelino cancelou uma visita de Estado porque não havia chegado nenhuma desculpa da França por aquele episódio. Dois casos de memória histórica ferida que se reverberam também na ONU. Tomemos os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, isto é, aquele conjunto de projetos das Nações Unidas para buscar tornar operativa a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Todas as negociações estão paradas. É a demonstração da crise do modelo de diplomacia multilateral, não por causa da vontade de poder de uma nação, mas porque os países do Sul do mundo reivindicam a plena autodeterminação com relação às políticas neocoloniais do Norte do mundo.
O senhor fala da dupla verdade sobre os direitos humanos por parte do Ocidente. De um lado, porém, vemos se manifestar um imperialismo dos direitos humanos, visto que todo o planeta deve se conformar ao modelo de sociedade ocidental. Mas depois vemos que, em muitos países do Sul do mundo, os movimentos sociais usam os direitos humanos como arma política contra o Norte. Como o senhor explica o uso ambivalente de um mesmo conceito?
O filósofo da política e jurista Maurice Duverger escreveu sobre o "fascismo exterior" das democracias ocidentais, entendendo com isso que a democracia, para a França, aItália, os EUA, a Inglaterra, fica dentro das suas fronteiras. E quando as multinacionais desses países agem fora das fronteiras nacionais, a democracia se torna uma palavra vazia ou um impedimento para os negócios. Em vez da democracia, preferem a política da selva, da força, do imperialismoIsrael é um país democrático, mas com relação aos palestinos continua fazendo uma política não democrática.
Os direitos humanos têm uma raiz etnocêntrica. Se a reconstruímos historicamente, vemos que a primeira declaração dos direitos humanos ocorreu na Filadélfia em 1776 e constituiu-se em um ato fundador dos EUA. A segunda declaração foi feita pelos revolucionários franceses, no rastro do contrato social de Jean Jacques Rousseau e deVoltaire. A terceira declaração é a de 1948. Mas é justamente nessa ocasião que os direitos humanos perdem a sua raíz branca e ocidental e se tornam direitos universais.
Nos seus últimos livros, o senhor criticou duramente o neoliberalismo, denunciando o poder predatório exercido pelo capital financeiro. A crise, porém, pôs em evidência que o neoliberalismo chegou ao seu fim. Mas não me parece que ali na frente haja um New Deal...
Para milhões de homens e de mulheres que perdem o trabalho, a casa, assistência de saúde, a crise atual é uma crise real. O mesmo não pode ser dito para a oligarquia do capital financeiro que, depois de um primeiro período de perdas, continuou acumulando riqueza. Tinha razão aquele escritor francês que escrevia que, quando os ricos emagrecem, os pobres morrem. Na crise há quem perde o trabalho e quem tem lucros. Quando a crise se manifestou com toda a sua radicalidade, os governos europeus e o norte-americano destinaram 1,7 trilhões de euros aos bancos. Era dinheiro dos contribuintes.
Ao mesmo tempo, o programa alimentar mundial da FAO foi redimensionado, reduzindo os investimentos para garantir a sobrevivência alimentar de centenas de milhões de pessoas. E assim, da noite para o dia, em Bangladesh, um milhão de crianças viu se tirado de seu prato aquele mínimo de calorias que era garantido pela FAO. E ainda nesses meses, as especulações na bolsa do setor agroalimentar se multiplicaram em ritmos impressionantes. Não seria ruim pensar em um tribunal de Nuremberg para esses especuladores da bolsa. A crise existe só para uma parte da população. De fato, a dois anos do início da crise, quase todas as empresas financeiras voltaram a fazer lucros. Por isso, não vejo o eclipse do modelo de sociedade que você chama de neoliberal. As dificuldades de Barack Obama para fazer uma tímida reforma da saúde, assim como as políticas contra o estado social na Europa, indicam que ainda estamos em pleno neoliberalismo.
Há quem fale de um pacto diabólico entre a China e os EUA para governar o mundo, mas os sinais de um tensão crescente entre os dois países são muito fortes.
Existem conflitos entre algumas multinacionais norte-americanas e empresas chinesas. De resto, são países que conduzem a mesma política oligárquica para pôr as mãos sobre o planeta. Os choques entre os dois governos são sobre como dividir o mundo entre si.



18/4/2008
 
Fome e direitos humanos. Artigo de Jean Ziegler
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=13281
 
“Por trás de cada vítima [da fome] há um assassino. A atual ordem mundial não é apenas mortífera, mas também absurda. O massacre está instalado numa normalidade imóvel”, diz, sem meias palavras, Jean Ziegler. Em seguida emenda: “Os novos senhores do mundo têm ojeriza aos direitos humanos”.
“Com a finalidade de reduzir as desastrosas conseqüências das políticas de liberalização e privatização executadas ao extremo pelos senhores do mundo e seus mercenários (FMI,OMC), a Assembléia Geral da ONU decidiu criar e proclamar como questão de justiça um novo direito humano: o direito à alimentação”.
Jean Ziegler é sociólogo suíço e relator especial da ONU sobre o direito à alimentação. O texto abaixo foi produzido por Ziegler para a edição descentralizada do Fórum Social Europeu. Na sua ausência deixou o texto para divulgação. O original francês se encontra no sítio netoyens.free.fr e foi postado no dia 26-01-2008. A tradução é do Cepat.
I. A cada cinco segundos, uma criança menor de dez anos morre de fome ou em decorrência das seqüelas imediatas. Mais de seis milhões em 2007. A cada quatro minutos, alguém perde a visão devido à falta de vitamina A. Há 854 milhões de seres humanos gravemente desnutridos, mutilados pela fome permanente. (1)
Isto acontece num planeta que transborda de riquezas. A FAO é dirigida por um homem corajoso e competente, Jacques Diouf. Ele constata que no estado atual de desenvolvimento das forças agrícolas de produção, o planeta poderia alimentar sem problemas 12 bilhões de seres humanos, ou seja, o dobro da população mundial atual. (2)
Conclusão: este massacre cotidiano devido à fome não obedece a nenhuma fatalidade. Por trás de cada vítima há um assassino. A atual ordem mundial não é apenas mortífera, mas também absurda. O massacre está instalado numa normalidade imóvel.
A equação é simples: quem tem dinheiro come e vive. Quem não tem sofre, torna-se inválido e morre. Não existe a fatalidade. Qualquer morte por fome é um assassinato.
II. O maior número de pessoas desnutridas, 515 milhões, vive na Ásia, onde representam 24% da população total. Mas se consideramos a proporção das vítimas, o preço mais alto é pago pela África subsaariana, onde há 186 milhões de seres humanos permanente e severamente desnutridas, ou seja, 34% da população total da região. A maioria dessas pessoas padece o que a FAO chama de “fome extrema”, sua ração diária se situa em média em 300 calorias abaixo do regime da sobrevivência em condições suportáveis.
Uma criança privada da alimentação adequada em quantidade suficiente, desde que nasce até os cinco anos, sofrerá as seqüelas durante toda a sua vida. Por meio de terapias especiais praticadas sob supervisão médica, é possível reintegrar à existência normal um adulto insuficientemente alimentado temporariamente. Mas, no caso de uma criança de cinco anos isso é impossível. Privadas de alimento, suas células cerebrais terão sido prejudicadas irremediavelmente. Régis Debray chama estes pequenos de “crucificados de nascimento”. (3)
A fome e a desnutrição crônicas constituem uma maldição hereditária: todos os anos, centenas de milhares de mulheres africanas severamente desnutridas dão à luz a centenas de milhares de crianças irremediavelmente afetadas. Todas essas mães desnutridas e que, contudo, dão à vida, lembram as mulheres condenadas de Samuel Beckett, que “dão à luz a um cavalo sobre um túmulo. O dia brilha por um instante e depois, de novo, a noite”. (4)
Uma dimensão do sofrimento humano está ausente desta descrição: a da pungente e intolerável angústia que tortura qualquer ser morto de fome desde que acorda. Como, durante o dia que começa, poderá assegurar a sobrevivência dos seus, e à sua própria? Viver nessa angústia é, talvez, ainda mais terrível do que suportar as múltiplas doenças e dores físicas que se abatem sobre esse corpo faminto.
A destruição de milhões de africanos pela fome acontece numa espécie de normalidade estática, todos os dias, num planeta desbordante de riquezas. Na África subsaariana, entre 1998 e 2005, o número de pessoas grave e permanentemente desnutridas aumentou em 5,6 milhões.
III. Jean-Jacques Rousseau escreveu: “Entre o fraco e o forte a liberdade oprime e a lei liberta”. Com a finalidade de reduzir as desastrosas conseqüências das políticas de liberalização e privatização executadas ao extremo pelos senhores do mundo e seus mercenários (FMIOMC), a Assembléia Geral da ONU decidiu criar e proclamar como questão de justiça um novo direito humano: o direito à alimentação.
O direito à alimentação é o direito de ter acesso regular, permanente e livre, quer seja diretamente ou por meio da compra com dinheiro, a uma alimentação quantitativa e qualitativamente adequada e suficiente, que corresponda às tradições culturais do povo a que pertence o consumidor e que garanta a existência física e psíquica, individual e coletiva, livre de angústia, satisfatória e digna.
Os direitos humanos – infelizmente! – não estão inscritos no Direito positivo. Isso significa que ainda não existe nenhum tribunal internacional que faça justiça aos famintos, defenda seu direito à alimentação, reconheça seu direito de produzir seus alimentos ou de obtê-los comprando-os com dinheiro e proteja seu direito à vida.
IV. Tudo vai melhor quando governos como o do presidente Lula, no Brasil, ou o presidente Evo Morales, da Bolívia, mobilizam por vontade própria os recursos do Estado, com a finalidade de garantir a cada cidadão seu direito à alimentação.
África do Sul é outro exemplo. O direito à alimentação está inscrito na sua Constituição. Esta estabelece a criação de uma Comissão Nacional dos Direitos Humanos, composta em paridade por membros nomeados pelas organizações da sociedade civil (Igrejas, sindicatos e diferentes movimentos sociais) e membros designados pelo Congresso.
As competências da Comissão são amplas. Desde que entrou em funcionamento, há cinco anos, a Comissão já conseguiu vitórias importantes. Pode intervir em todos os âmbitos implicados na negação do direito à alimentação: expulsão de camponeses de suas terras; autorização dos municípios a sociedades privadas para a gestão do abastecimento da água potável, que implique taxas proibitivas para os habitantes mais pobres; desvio da água por parte de uma sociedade privada em detrimento dos agricultores; falta de controle sobre a qualidade dos alimentos vendidos nas periferias, etc.
Mas, em quantos governos, especialmente no Terceiro Mundo, existe a preocupação cotidiana prioritária pelo respeito à alimentação de seus cidadãos? Pois bem, nos 122 países do Terceiro Mundo vivem atualmente 4,8 bilhões dos 6,2 bilhões de pessoas que povoam o Planeta.
V. Os novos senhores do mundo têm ojeriza aos direitos humanos. Eles os temem como o diabo a água benta. Porque é evidente que uma política econômica, social e financeira que cumprisse ao pé da letra todos os direitos humanos, romperia taxativamente a absurda e mortífera ordem do mundo atual e produziria necessariamente uma distribuição mais eqüitativa dos bens, satisfaria as necessidades vitais das pessoas e as protegeria da fome e de uma grande parte de suas angústias.
Portanto, o objetivo final dos direitos humanos encarna um mundo completamente diferente, solidário, liberto do menosprezo e mais favorável à felicidade.
Os direitos humanos políticos e civis, econômicos, sociais e culturais, individuais e coletivos  (5) são universais, interdependentes e indivisíveis. E são, hoje, o horizonte de nossa luta.
Notas:
1. FAO, O estado da insegurança alimentar no mundo. Roma, 2006.
2. Uma alimentação normal significa proporcionar diariamente 2.700 calorias a cada indivíduo adulto.
3. Régis Debray e Jean Ziegler. Il s'agit de ne pas se rendre. Paris: Arléa, 1994.
4. Samuel Beckett. Esperando Godot (1953). São Paulo: Cosac Naify, 2005.
5. Direitos humanos coletivos são, por exemplo, o direito à autodeterminação ou o direito ao desenvolvimento.



3/12/2007
 
'Em vez de o PT promover a agricultura familiar, volta ao açúcar e ao período colonial'. Entrevista com Jean Ziegler
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=11075
 
Relator especial da ONU sobre o direito à alimentação, o sociólogo suíço Jean Ziegler em entrevista à Folha de S.Paulo, 02-12-2007, ataca a "refeudalização" da sociedade e acusa o Brasil de aumentar a fome no mundo ao investir no etanol derivado da cana-de-açúcar. Como relator especial da ONU sobre o Direito à Alimentação, Ziegler apresentou um estudo no fim de agosto em que aponta a febre do biocombustível como um dos principais fatores da alta nos preços dos produtos agrícolas básicos, com impacto direto no aumento da fome no mundo. 'Usar terras de agricultura para o etanol é um crime', dizZiegler. 'Socialmente é um enorme retrocesso para o Brasil'.
Eis a entrevista.
O sr. sempre demonstrou admiração pelo presidente Lula. O etanol mudou essa opinião?
O presidente Lula é um homem profundamente honesto e autêntico. O programa Bolsa Família é muito bom. Tirar 11 milhões de pessoas da pobreza é louvável. Mas a conversão de terras de agricultura em terras para o bioetanol é um erro profundo.  A fome continua sendo o problema primordial do Brasil. Segundo a Pastoral da Terra, há 22 milhões de subnutridos no Brasil. Um dos principal argumentos do governo brasileiro é o de que o etanol brasileiro é feito da cana, que não é usada para alimentação. Com isso, estende a cana a todo lugar.
Que mal há nisso?
Os dois maiores sociólogos da história do Brasil, Gilberto Freyre e Fernando Henrique Cardoso, em seus livros mais famosos, Casa-Grande e Senzala e Capitalismo e Escravidão, defendem a mesma tese: a cana-de-açúcar é a desgraça do país. Latifúndio, fome, subdesenvolvimento, miséria, tudo isso vem do açúcar. Milhares de cidades e vilarejos passam a ser cercados por esse monstro, que é a cana-de-açúcar.
Durante um tempo o açúcar sofreu um declínio, e a agricultura se desenvolveu. Agora esse monstro está de volta, devorando a terra da agricultura. O açúcar voltou a ser santificado, como na época da colônia, quando a oligarquia enriqueceu e a música, a cultura, tudo era pago pelo açúcar.
Em vez de o PT promover a agricultura familiar, volta ao açúcar, que significa concentração de terras nas mãos das multinacionais e das oligarquias. É muito mais que um problema de produção. Socialmente o Brasil sofre um enorme retrocesso, volta ao período colonial.
O sr. não vê diferença entre o etanol de cana e o feito de alimentos como o milho, como o norte-americano?
Concordo que há diferença. Com um tanque de 50 litros, um carro movido a etanol de milho consome 205 quilos de milho. A mesma quantidade é suficiente para alimentar uma criança mexicana por um ano. No momento em que enche o tanque, você tira o alimento de uma criança. É uma conseqüência direta.
Mas o argumento brasileiro é hipócrita. Porque, se você aumenta a produção de cana, isso ocorre à custa de plantações de alimentos, o que dá no mesmo.
Há outro argumento usado pelo presidente Lula, o de que o Brasil tem 90 milhões de hectares não cultivados. O problema é que o investimento e a água usados para o etanol acabam sendo tirados de outros cultivos. E, quando esse modelo é adotado, o alimento passa a ser importado.
O que acontecerá com a miséria no Sergipe, Piauí, Pará, em Alagoas, onde as pessoas não têm terras ou têm áreas pequenas demais? Essa população de 22 milhões de desnutridos vai aumentar. Portanto, o argumento de que a cana não é alimento é totalmente hipócrita. Outro efeito negativo do etanol é a devastação das florestas na Amazônia e no Mato Grosso.
O governo diz que praticamente não há plantio de cana na Amazônia.
Mas há. Há destruição de floresta da Amazônia não só para a plantação de soja, mas também para a de cana.
O lado positivo do etanol, como a preservação do ambiente e o aumento do emprego, não compensa essas desvantagens?
O lado negativo é muito maior. A fome é o maior problema da humanidade, o mais urgente, e continua a ser a principal causa de mortes no mundo. No ano passado, 36 milhões de pessoas morreram de causas diretas ou indiretas ligadas à desnutrição.
A cada cinco segundos uma criança abaixo de dez anos morre de fome. A cada quatro minutos, alguém perde a visão por falta de vitamina A. Ao menos 854 milhões de pessoas sofreram com desnutrição em 2006. E o problema está aumentando, porque em 2005 esse número era de 842 milhões. A fome continua a ser a principal causa de mortes neste planeta. Atinge um em cada seis seres humanos.
O etanol promete mais empregos, mas no meu relatório eu mostro que isso não é verdade. No Brasil, cem hectares de terra dedicados à agricultura familiar geram 35 empregos, enquanto a mesma área dedicada à plantação industrial de cana gera apenas dez empregos. O etanol aumenta a miséria e o desemprego. A terra se torna tão cara que as famílias não conseguem mais subsistir. É um retrocesso social histórico e um afastamento de tudo a que o Brasil moderno aspira.
Como a alta nos preços dos alimentos está afetando o direito à alimentação?
Em 2005, uma tonelada de trigo custava US$ 145 na Bolsa de Chicago. Hoje esse preço pulou para US$ 352. Não é por falta de produção. A produção de trigo neste ano foi de 2,1 bilhões de toneladas. O milho teve a mesma explosão. Dos 53 países africanos, 31 têm que recorrer aos mercados mundiais para cobrir seus déficits de alimentos, pois sua produção é insuficiente para suprir o mercado interno. E têm que pagar preço de mercado.
Se esses alimentos sobem tanto de preço, esses países não conseguem manter suas populações alimentadas. E os preços das commodities agrícolas estão subindo por causa do aumento da demanda causado pela febre dos biocombustíveis, como o etanol.
Não apenas.
Sim, mas principalmente por causa do etanol. O Programa Mundial de Alimentos da ONU no ano passado alimentou e manteve vivas 91 milhões de pessoas com ajuda humanitária. Mais de 60% dessa ajuda veio de excedente na produção americana. O New York Times noticiou que neste ano o departamento da Agricultura fornecerá apenas metade do volume de ajuda fornecida no ano passado, porque os preços estão tão altos que eles não podem mais comprar o excedente.
Nos campos de Darfur [Sudão], por exemplo, há 2,2 milhões de pessoas deslocadas pela guerra. Lá a ONU não está conseguindo manter as pessoas alimentadas e vivas. Por causa do bioetanol. Ponto. Se isso não é um crime, não sei o que é.
O sr. não leva em consideração o outro lado desse debate?
Não. Há argumentos em defesa do etanol, mas nenhum é mais importante do que manter as pessoas alimentadas. O argumento da mudança climática, acelerada por causa do petróleo e diesel, faz sentido. Mas a prioridade absoluta é manter o ser humano vivo.
O que o senhor propõe?
Proponho uma moratória. Não vou tão longe como organizações como Greenpeace,Oxfam e Médicos sem Fronteiras, que querem a interdição do etanol. Proponho uma moratória de cinco anos. O motivo é simples: quero ganhar tempo. Nos laboratórios de São Paulo e Zurique os cientistas estão a ponto de criar uma tecnologia que transforme lixo agrícola em bioetanol.
Outro exemplo: a Mercedes-Benz está desenvolvendo na Índia um arbusto, a Jatropha, que cresce apenas em regiões semidesérticas e é totalmente adequado para ser convertido em etanol. Tem frutos quase venenosos, não comestíveis.
Em cinco anos esse método estará avançado para que em áreas do sertão de Pernambuco, por exemplo, possam ser plantadas mudas de Jatropha, onde alimentos não crescem. Fiz essa proposta na ONU em 5/10 passado e fui violentamente atacado pelo embaixador brasileiro. Um representante do governo boliviano me ligou para dizer que a Bolívia apresentará uma resolução em dezembro para votar a proposta. E estou razoavelmente otimista de que venceremos.
Em entrevista à Folha, o secretário-geral, Ban Ki-moon, disse que sua posição sobre o etanol não é a da ONU.
É verdade. O relator é totalmente independente. Meu papel é escrever um relatório como especialista e fazer recomendações.
Que lições tirou do processo de elaboração do relatório?
Aprendi que os conglomerados agrícolas, o chamado agribusiness, é imensamente poderoso no mundo de hoje. Monsanto, Syngenta, Cargill. Em 2006, as 500 maiores empresas multinacionais privadas do mundo controlavam 52% do PIB mundial. É um poder imenso o desses atores não-governamentais. E exercem uma pressão gigantesca no Brasil, sobretudo as americanas.
O que é a "refeudalização" do mundo, de que o sr. fala em seu último livro?
Vivemos o fim de uma era. A Revolução Francesa [1789] abriu caminho para a civilização que conhecemos, balizada por princípios como direitos humanos, poder com origem no povo, solidariedade, justiça social, força da lei. Esses valores estruturam o mundo civilizado. Mas agora há o nascimento de uma nova civilização: a globalização, o mundo de um só mercado. O capital financeiro assumiu o poder.
Não o industrial ou o comercial, mas o poder financeiro
. Isso criou uma riqueza imensa. Na primeira década da globalização, entre 1992 e 2002, depois da queda da União Soviética, segundo o Banco Mundial, o PIB mundial mais que dobrou. O comércio triplicou. O consumo de energia dobra a cada quatro anos. A produtividade é imensa. Liberalização, privatização, livre circulação de capital e serviços, redução drástica do setor público.
Isso liberou forças econômicas imensas, é verdade. Mas, ao mesmo tempo, os senhores do capital financeiro, as oligarquias, conquistaram um poder que nenhum imperador, papa ou rei jamais teve. Uma monopolização incrível: a refeudalização do mundo. Ao mesmo tempo, o número de famintos e de epidemias aumentou. A miséria hoje é pior que no tempo da escravidão.
Os números mostram que a globalização também tirou milhões de pessoas da pobreza, em países como Brasil, Índia e China.
Não. Isso é uma ilusão demográfica. Os números absolutos de pessoas vivendo em pobreza extrema, com menos de US$ 1 por dia, aumentaram.

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