O BNDES na visão dos movimentos sociais
23 de novembro de 2009
Do IHU On-Line
“Nós (dos movimentos sociais) temos conversado com o BNDES, mas achamos que deve haver mais avanços. Queremos que o BNDES seja um banco público, de interesse público e popular e o mais democrático possível”. Assim, Luiz Dalla Costa aborda as relações entre o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social e os movimentos sociais, formados por pessoas atingidas por obras financiadas pelo banco. Em entrevista, por telefone, à IHU On-Line, o coordenador do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no Rio Grande do Sul abordou os impactos trazidos pelas grandes construções custeadas pelo BNDES, as mudanças ocorridas no banco com a transição de governos e os setores da economia que produzem os impactos mais graves na sociedade.
Sobre as reivindicações das populações impactadas, Dalla Costa fala sobre o “Primeiro Encontro Sul-americano de Populações Afetadas por Projetos Financiados pelo BNDES”, que discutirá a transparência nas informações dos financiamentos e as políticas sociais por parte do banco. “Queremos que o banco se coloque como responsável por esses empreendimentos, pois entendemos que ele passa a ser responsável ao ceder os empréstimos dos recursos para as obras. O BNDES tem que se preocupar tanto se esse grande projeto não irá afetar as populações quanto, se afetar, o que deve ser feito e colocado como política de financiamento”, afirma Dalla Costa.
Confira a entrevista.
O movimento social tem criticado o BNDES pela formação de uma nova categoria de brasileiros: os “impactados”. O senhor poderia explicar quem são eles e qual é a responsabilidade do banco?
O BNDES se tornou, nos últimos anos, o principal banco financiador dos grandes projetos no Brasil. E os grandes projetos, como hidrelétricas, mineradoras e rodovias, atingem muitas pessoas. Muitas famílias têm que ser deslocadas em função das construções. Portanto, o banco, na medida em que financia essas obras, passa a ser corresponsável pelo impacto que estas causam na vida das pessoas. Tivemos casos de hidrelétricas que atingiram de duas a três mil famílias, e até mais que isso. Um exemplo: já houve a construção de seis hidrelétricas na divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina, no Rio Uruguai, e essas hidrelétricas tiveram financiamento de quase seis bilhões de reais por parte do BNDES. Hoje as famílias que foram afetadas e que moram ao redor dos lagos das Usinas de Itá, Machadinho e Campo Novos não têm nenhum programa de desenvolvimento regional e de recuperação das comunidades por parte do BNDES, e foi o próprio banco que financiou a obra. Por isso que vamos organizar agora um primeiro encontro nacional dos atingidos por esses grandes projetos financiados pelo BNDES. O banco também tem atingidos, tem pessoas que são impactadas por esses projetos financiados. E, inclusive, o BNDES é sócio de vários desses empreendimentos.
No final de novembro, será realizado, no Rio de Janeiro, o “Primeiro Encontro Sul-americano de Populações Afetadas por Projetos Financiados pelo BNDES”. Virão pessoas de que países? Qual é o objetivo do encontro?
Estamos convidando pessoas da Bolívia, Peru e Equador, onde já houve projetos financiados pelo BNDES. Alguns envolveram empresas brasileiras, como a Odebrecht no Equador, e tiveram vários problemas na obra ou porque tem financiamentos através do banco. Também vamos reunir pessoas afetadas de todo o Brasil. Virão representantes de vários empreendimentos financiados na área da cana, e nas questões da pecuária extensiva, das hidrelétricas e da mineração. Reuniremos essas pessoas que sofrem impactos dessas grandes obras ou projetos onde tem investimentos do BNDES, para discutir que políticas o BNDES desenvolve, e quais as que ele não desenvolve, no sentido de qualificar melhor nosso trabalho e nossa crítica. Até hoje existiram muito poucas informações para a população que é afetada. Nós queremos um maior acesso às informações, chamamos isso de transparência nos financiamentos. Queremos também que o BNDES adote critérios que levem em conta os impactos sociais e ambientais causados pelas obras. Queremos que o banco se coloque como responsável por esses empreendimentos, pois entendemos que ele passa a ser responsável ao ceder os empréstimos dos recursos para as obras. O BNDES tem que se preocupar tanto se esse grande projeto não irá afetar as populações quanto, se afetar, o que deve ser feito e colocado como política de financiamento. Além disso, entendemos que o BNDES também peca por omissão no sentido do que não faz. O banco financia uma grande obra, mas não se preocupa com que a população, afetada por essa grande obra, tenha as informações de forma isenta, e não pelas empresas, porque se for por essas, certamente serão informações tendenciosas. Entendemos que o BNDES deve auxiliar essas entidades de organização da própria população atingida, entidades que não estão envolvidas com a obra e até fazem críticas a ela, para que as populações sejam devidamente informadas com antecedência sobre os impactos e possam, de forma organizada, reivindicar seus direitos. O BNDES também deve assumir suas responsabilidades se no caso for constatado que houve violação de direitos, como existe de fato. Nós mesmos estamos trabalhando com uma comissão que está investigando violação de direitos humanos na construção de grandes hidrelétricas, e já está constatada essa violação de direitos em obras financiadas pelo BNDES.
Deve-se haver uma maior transparência nas atuais obras, e devem ser discutidos, com os movimentos e com a sociedade civil, novos critérios para futuros financiamentos do banco. É absolutamente justo discutir isso. Tem alguns que são atingidos por barragens, e alguns por outros empreendimentos, porque o dinheiro do BNDES é público, é dinheiro de todo o cidadão brasileiro [vem do FAT - Fundo de Ampara ao Trabalhador]. Então temos o dever de exigir, e o BNDES tem a obrigação de nos atender. E isso também fora do Brasil, já que existem pessoas afetadas por essas obras em outros países.
Na visão do movimento social, o BNDES está a serviço de que interesses?
Hoje os grandes beneficiados pelos financiamentos do BNDES são as grandes empresas. Grande parte delas produz para exportação e não paga imposto, como é o caso dos minérios. A própria energia produzida para a produção de minérios tem um grande aporte de recurso público, e quem ganha na construção, venda de equipamentos, na utilização e venda de energia, são as grandes empresas. Os grandes mineradores recebem subsídio para usar grandes quantidades de energia. Esse minério é extraído como riqueza natural do Brasil, é exportado, e não paga sequer imposto. Quem é o grande beneficiado em todo esse processo? As grandes empresas nacionais e multinacionais, entre elas a Suez Tractebel, que é uma grande empresa da agroenergia, Odebrecht, que é construtora e está na construção de grandes obras, a Votorantim e a companhia Vale do Rio Doce. Esses são os grandes beneficiados. Inclusive, nos últimos anos, só nesta área da energia, eles cobraram da população brasileira sete bilhões a mais nas contas de luz, e agora dizem que não querem devolver. Se fosse um pobre já estaria preso, mas como são grandes empresários, tem gente que diz que não foi roubo, mas sim um erro. Mas um erro de sete bilhões é algo absurdo.
Muitos dizem que, com o governo Lula, o BNDES recuperou o seu papel estratégico na formulação de um projeto de país, contrário ao governo FHC, que utilizou o banco para financiar as privatizações. Essa interpretação de que o banco estaria a serviço dos interesses do Estado, e não mais apenas do mercado está equivocada?
Houve mudanças, sem dúvida. Acho que o governo Fernando Henrique foi o pior que já vi no Brasil, porque vendeu todo o patrimônio público, sucateou grandes setores que eram de primeira linha, vendeu a Vale do Rio Doce, parte do setor elétrico, fez com que o povo brasileiro pagasse por tudo isso. Gerou um caos, o processo de privatização foi a pior coisa feita no Brasil em toda sua história, não temos dúvida disso. O que houve com o governo Lula é que ele passou a ter um outro planejamento, não privatizou aquilo que já existia, mas financiou a entrega do patrimônio. Isso tem diferença. Antes, em uma obra que já estava feita, o BNDES dava o dinheiro para uma grande empresa comprar o que já era nosso, com o nosso dinheiro, inclusive as próprias estatais eram proibidas de fazer investimentos e pegar dinheiro público do BNDES, e isso foi mudando gradativamente. Hoje o Estado brasileiro participa em obras com até 49% do valor, já o BNDES financia até 80 e 90% dessas grandes obras, mas ainda continua 51%, ou seja, o capital majoritário na mão das grandes empresas.
Toda a lógica que é implantada é a das grandes empresas, de tentar obter o máximo de lucro, que é pago pela população brasileira. O povo brasileiro que paga as taxas, as tarifas, os impostos, para que essa prática continue vigorando. Então, houve mudanças sim, mas entendemos que a lógica não mudou no essencial. Inclusive, dá pra se dizer que, nos últimos anos, o tratamento das questões sociais e ambientais piorou no governo FHC e não foi recuperado ainda pelo governo Lula. Existe de fato uma nova organização do investimento, nós sentimos isso, mas a lógica continua praticamente a mesma.
Quais são os principais setores da economia que o Banco financia que produzem impactos mais graves?
É o setor da mineração, das hidrelétricas, o investimento na produção de carne de gado, que vai avançando cada vez mais sobre a floresta amazônica, no setor de cana, de celulose, que vai transformando em deserto verde o que era de bem natural brasileiro, e vai repassando grande quantidade de terras dos rios, minérios, das grandes empresas nacionais e multinacionais. Hoje os setores siderúrgico, mineral e de energia são grandemente beneficiados pelos financiamentos do BNDES.
Qual é a relação do movimento social hoje com o BNDES? Tem ouvido as suas reivindicações?
A partir da própria discussão com essa série de organizações que chamamos de plataforma BNDES, que é um conjunto de organizações do movimento social e de entidades não-governamentais, buscamos o diálogo com o banco, para que este tivesse maior transparência, para que houvesse mudança nas políticas, então começamos a ter um contato maior. A plataforma BNDES já teve contato com o presidente do banco, Luciano Coutinho, já houve algo no sentido da transparência, da divulgação de insights na questão de algumas informações, mas não estão completas e não há contento ainda. Nós mesmos, dos movimentos sociais, já tivemos conversas com o BNDES, onde eles nos apresentaram o que fazem e o que estão prevendo. Dá pra se dizer que nós achamos que isso é a coisa certa a ser feita, que o banco deve ter essa abertura, tem que ouvir a população que é afetada pelos grandes projetos onde o banco é financiador e temos que buscar novos critérios para financiamentos do banco que favoreçam a maioria do povo brasileiro. Como eu disse, é mais fácil uma grande empresa conseguir um bilhão do BNDES, do que um grupo de agricultores ou pescadores conseguir 50 mil, pois todo o banco está montado para essa lógica do grande empresário, do grande empreendedor e capitalista nacional e multinacional. Nós temos conversado com o BNDES, mas achamos que deve haver mais avanços. Queremos que o BNDES seja um banco público, de interesse público e popular e o mais democrático possível.
Como integrante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), qual é a sua avaliação sobre o último “apagão”?
Primeiro, é importante dizer que não falta produção de energia no Brasil, o país tem energia de sobra, tanto é que, com a crise dos últimos anos, se diminuiu o consumo de energia, e hoje estamos no patamar de consumo que estávamos em 2007. Estamos consumindo menos que em 2008, e outras obras já foram feitas, então temos uma folga de energia muito grande. Não é necessário, para resolver o problema do apagão, fazer mais obras. Pelo contrário, com o que se tem, teremos energia por um bom tempo. Nossa visão com relação ao apagão é que complicações como esta podem ocorrer. Nenhum sistema é infalível. O Brasil tem um bom sistema energético nacional e que se torna mais eficiente se tiver gestão e controle únicos. Agora, do jeito que os últimos governos têm feito, principalmente com o processo da privatização, também foi privatizado parcelas do setor elétrico. Cada capitalista individual passou a ter um pedaço daquilo que deveria funcionar de forma única e organizada. Hoje alguns são donos de algumas barragens, outros de termoelétricas, outro é dono de um pedaço de linha de transmissão, outro de uma revenda de energia. Este compartilhamento do setor elétrico foi ruim e está aí uma das causas desse apagão. Hoje se tem mais dificuldades de ter o gerenciamento único, apesar de que o governo Lula até recuperou em certa parte essa organização. E mesmo os órgãos que foram criados, foram feitos para legitimar essa lógica de transformar a energia elétrica em mercadoria. Hoje as grandes empresas ganham rios de dinheiro vendendo energia 400% mais caro do que antes, que era do governo. Houve um aumento extraordinário das tarifas de energia no último período.
Quando a lógica é a do lucro, de transformar a energia em mercadoria e não em bem público necessário para o desenvolvimento do país, esse tipo de problema, como o apagão, tende a ocorrer de forma mais seguida. Houve três casos recentes. No primeiro caso, houve esta questão da cobrança extraordinária nas tarifas de energia, aí o governo vai lá, e as empresas dizem que não podem devolver. Alguém até disse que poderia ser imoral, mas que era legal. Lógico que é imoral, ficaram com sete bilhões de reais do povo a mais nas empresas. O segundo fato é essa falha que houve e que deixou muita gente às escuras. O terceiro é que o próprio governo reconhece que existe uma dívida. São três fatos importantes, dívida com o povo que foi atingido, cobrança a mais dos consumidores, e o problema de fornecimento. Ao nosso entendimento, isso não é uma questão pontual, é de como deve ser organizado o atual modelo de produção de energia no Brasil. O governo deveria acabar com as privatizações, ter um grande projeto de economia de energia, de eficiência energética, questionar o modelo de exportação de energia através da exportação de minérios, de celulose etc. que não paga imposto e não gera emprego para nosso povo.
Por que o BNDES não atua como banco público?
Por João Roberto Lopes Pinto
Revista Sem Terra, no. 51, Jul/Ago, 2009
1. O BNDES é o viabilizador do atual padrão de desenvolvimento, centrado na exportação de natureza e que se mostra insustentável econômica, social e ambientalmente.
Alguém já disse que na atual divisão internacional do trabalho, a China entra como oficina, a Índia como escritório e o Brasil como fazenda do mundo, isso para ficar nos Brics.
A crise financeira e suas repercussões sobre os investimentos demonstram a fragilidade e vulnerabilidade de um desenvolvimento ancorado na exportação de commodities, que estão submetidas às oscilações do mercado externo. A queda no preço das commodities e a insistência do Estado brasileiro, via BNDES, em não somente seguir financiando, mas em ampliar o apoio, socorrendo empresas exportadoras é a demonstração cabal de que não se trata apenas de uma passiva inserção no mercado global. Trata-se de uma opção deliberada de consolidar esta estratégia subordinada de inserção do país.
Os defensores desta forma de inserção a defendem com o argumento de que nos setores intensivos em natureza seríamos competitivos. Resta indagar de que competitividade se trata, quando se constata que este modelo somente se sustenta do ponto vista econômico com uma drenagem estupenda e crescente de recursos públicos para o setor privado.
Somente no governo Lula, o orçamento do BNDES quintuplicou. O BNDES direciona a maior parte de seu orçamento gigante de R$ 160 bilhões — mais de duas vezes o orçamento de investimento do governo federal! — para os setores de mineração e siderurgia, hidrelétricas, petróleo e etanol, papel e celulose e agropecuária. Some-se a isso, o BNDESPar (empresa de participações do Banco), que possui hoje uma carteira de ações no valor aproximado de R$ 70 bilhões, onde os setores de mineração e siderurgia, geração e distribuição de energia, petróleo e gás, papel e celulose representam 81% da carteira.
Em resposta à crise que atinge boa parte destes setores, além da perspectiva do socorro com a redução de taxas e ampliação do prazo de carência nos empréstimos, o banco tem atuado em favor da concentração econômica. A exemplo do financiamento de R$ 2,4 bilhões à Votorantim para viabilizar a compra da Aracruz Celulose, que perdera algo próximo de R$ 2 bilhões nas aplicações em derivativos. O BNDES, que já contava com participação nestas empresas, deverá ficar agora com 29% do capital da nova empresa. Importa dizer que estas empresas também têm participações em outras grandes do setor como Suzano Bahia Sul e Veracel.
A mesma coisa se passa no caso da compra da Sadia pela Perdigão, em que o BNDES já declarou que possui interesse em tomar parte no capital da nova empresa Brasil Foods, além de ter sido historicamente um dos principais financiadores de ambas as empresas.
O Banco participou também da aquisição da Swift pela JBS-Friboi, tornando a empresa o maior frigorífico de carne bovina do mundo, garantindo financiamento de R$ 1,1 bilhão para capitalização da empresa – o banco ficando com uma participação de 15% do capital. Sem esquecer que o BNDES é igualmente sócio dos outros dois grandes frigoríficos: Bertim, no qual possui 30% das ações, e Mafrig, em que participa com 15%. No ano passado a primeira empresa recebeu financiamento de R$ 2,4 bilhões e a segunda de R$ 700 milhões.
O banco também é acionista de grandes usinas de etanol, a exemplo da Brenco, que obteve um financiamento de R$ 1,2 bilhão e é uma das integrantes do consórcio de usinas envolvidas no Projeto Uniduto, para a construção de um alcoolduto ligando o Centro-Oeste ao litoral paulista. Desde 2003, o BNDES já destinou mais de R$ 30 bilhões para o agronegócio.
Outro setor amplamente beneficiado é o da mineração. Neste caso, destaca-se o apoio do BNDES à Vale do Rio Doce. No ano passado o Banco aprovou para a Vale o seu maior financiamento para uma única empresa, no valor de R$ 7,3 bilhões. O acionista controlador da Vale é a Valepar S.A, que possui 53% do capital. O BNDES possui 12% da Valepar e é detentor de golden shares (ações de ouro) que garantem ao banco poder de veto sobre decisões essenciais à empresa, porém jamais utilizado. A Vale possui, por sua vez, o controle acionário de gigantes da produção de alumínio, como a Alunorte (57%) e Albras (51%). Tais empresas também recebem financiamento do banco, além de serem as principais beneficiárias da energia gerada pela Hidrelétrica de Tucuruí, que igualmente foi apoiada pelo BNDES.
Na verdade, o banco está presente como financiador em todo grande projeto hidrelétrico, que tem exatamente o papel de carrear energia para estas grandes empresas e não para a população. Apenas para se ter uma idéia, a Vale consome sozinha 5% de toda a energia elétrica gerada no Brasil e possui participação em 12 empreendimentos hidrelétricos. Em outro exemplo, a Alcoa, que recebeu um financiamento de R$ 500 milhões do banco, possui participação de 26% — a Vale conta com 30% — no consórcio responsável pela Hidrelétrica de Estreito, que, por sua vez, obteve um apoio de R$ 2,6 bilhões do BNDES. A geração de energia neste caso é distribuída preferencialmente e de modo subsidiado para setores eletro-intensivos, voltados para a exportação e não para o atendimento do mercado interno.
Este exemplo demonstra como o BNDES alimenta e ordena uma verdadeira rede oligopolista, onde as empresas possuem participações cruzadas, atraindo igualmente o capital financeiro privado. A concentração econômica alimentada pelo Estado brasileiro aprofunda de forma dramática o modelo de especialização produtiva e de subordinação das populações tradicionais e da agricultura familiar, responsável por desempregar, desorganizar a produção de alimentos e impactar de modo irreversível importantes biomas.
Assiste-se, pois, ao empobrecimento da estrutura produtiva do país, reduzindo a capacidade de diversificação produtiva e geração de riqueza, renda e trabalho. Uma estrutura que depende da transferência maciça de recursos públicos e, portanto, do controle privado dos principais instrumentos estatais de financiamento e gestão econômica, a exemplo do BNDES.
2. O BNDES é corresponsável pelos graves impactos sociais e ambientais dos projetos que financia
Os setores apoiados pelo banco, além de submetidos à vulnerabilidade do mercado externo, encontram-se normalmente desconectados do mercado interno [mais ou menos...], com baixo nível de ocupação de mão-de- obra, além de altamente impactantes do ponto de vista socioambiental.
Importantes biomas do país encontram-se seriamente ameaçados pela expansão da monocultura, pecuária e mineração. Praticamente 40% da área de Cerrado no Brasil está comprometida em razão da soja e pecuária e, cada vez mais, pela expansão da cana, que vem ameaçando também a região do Pantanal. As principais áreas de fronteira de expansão da cana são exatamente o sul do Mato Grosso do Sul e de Goiás. Enquanto isso, a carteira do BNDES para o setor de etanol aproxima-se dos R$ 10 bilhões.
No bioma Amazônia, 75% da área desmatada na região é ocupada pela pecuária, como demonstrou relatório recente do Greenpeace. Boa parte dos fornecedores das empresas frigoríficas apoiadas pelo BNDES são agentes do desmatamento na região. O Brasil é o quarto país com maiores emissões de CO2 (gás carbônico), graças especialmente ao desmatamento, que é responsável por 75% das emissões. O banco é coresponsável por tais questões, à medida que segue financiando empreendimentos que comprovadamente promovem o desmatamento. Vale lembrar, por exemplo, que a Bertim sofreu antecipação do vencimento de seu crédito com o IFC, organismo do grupo Banco Mundial responsável por financiar o setor privado, por conta de ter como fornecedores pecuaristas responsáveis pelo desmatamento.
No caso da Bertim, a responsabilidade do BNDES é mais que uma responsabilidade indireta ou “solidária”. Isso porque, como visto, o banco é um importante acionista da empresa. Neste caso, a responsabilidade é direta, pois o BNDES é sócio do empreendimento, como vem inclusive reivindicando a Amigos da Terra-Amazônia junto ao ministério público.
Para além dos biomas, os investimentos financiados pelo Banco impactam diretamente as populações. É o caso, por exemplo, da Usina São João (USJ) na cidade de Quirinópolis (GO), apoiada pelo Banco com R$ 600 milhões, que foi autuada pelo Ministério Público do Trabalho por manter 421 trabalhadores em situações de trabalho análogas à escravidão. A Brenco também foi autuada por ter trabalhadores em condições degradantes de trabalho. Mais recentemente, a empresa entrou com mandado de segurança para impedir a inclusão do nome da empresa na “Lista Suja” do Ministério do Trabalho e Emprego (cadastro de empreendimentos em que houve flagrante da existência de trabalho escravo), conforme informações da ONG Repórter Brasil. Novamente se tem uma situação clara e grave de responsabilidade do banco, pois neste caso, além de sócio, o BNDESPar tem assento no conselho de administração da Brenco.
A desestruturação dos meios materiais e imateriais de sustentação de povos tradicionais é outra conseqüência direta destes investimentos. A perda do acesso à terra e a poluição dos cursos d’água são os principais impactos para as populações locais na região de Barcarena (PA), onde encontramse instaladas a Alunorte e Albras.
Os povos indígenas vêm sendo igualmente afetados, como no caso do povo Kaiowá Guarani, no Mato Grosso do Sul, que perdem o controle do seu território para a expansão da cana, conforme noticiou o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Em relação às hidrelétricas, o caso de Barra Grande (SC/RS), com participações da Alcoa e Votorantim, é emblemático dos impactos gerados por financiamentos do banco no setor. Além do impacto ambiental, cerca de 2.500 famílias, entre pequenos e médios agricultores, além de trabalhadores rurais sem-terra, foram atingidos, segundo o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
O caso da Vale merece amplo destaque, pois seus impactos são de grande amplitude. Desde o problema de trabalho escravo e da poluição nas carvoarias, do “Deserto Verde” das extensas áreas de plantação de pinus e eucalipto, passando pelo desmatamento na região de Eldorado dos Carajás e chegando ao descumprimento de normas ambientais e trabalhistas pelas siderúrgicas na região de Marabá (PA), como revela a rede Justiça nos Trilhos. Acrescente-se que, em meio à crise, a Vale foi responsável por uma série de demissões, assim como a Embraer, e ambas as empresas seguiram recebendo financiamento do BNDES.
A responsabilidade do BNDES nessas situações está configurada não apenas porque diante das situações de violação de direitos sociais, ambientais, econômicos e culturais o banco segue financiando a atividade, mas, ainda e para além disso, porque como sócio do empreendimento não atua para mudar a conduta da empresa. A responsabilidade ou a falta de responsabilidade do banco incide também no próprio processo de análise e aprovação dos projetos encaminhados pelas empresas para obtenção do financiamento. A política ambiental do BNDES, descrita em seu site, é a nosso ver amplamente insatisfatória e sem efetividade. Concretamente, o banco hoje apenas avalia a regularidade ambiental do projeto, ou seja, a observância dos licenciamentos ambientais. Não há uma atitude pró-ativa, em que pese o recém-assinado protocolo de intenções socioambientais com o ministério do Meio Ambiente.
O banco, na realidade, deveria ter um papel indutor de boas práticas sociais e ambientais pelas empresas, por meio do estabelecimento de critérios e salvaguardas para a aprovação de projetos. Contudo, o BNDES encontra-se hoje em uma posição formalista e legalista, mesmo consciente da fragilidade institucional dos processos de licenciamento.
Ao mesmo tempo, apresenta uma dificuldade injustificada e anacrônica em dar publicidade às informações sobre os projetos que financia. Comparada novamente com instituições como o IFC, que não chegam a ser exemplos de democracia, o BNDES está muitíssimo aquém de deter uma política consistente de divulgação de informações, sequer atendendo efetivamente ao princípio constitucional de publicidade de seus atos. Embora não se justifique, a não divulgação de informações é funcional, pois assim o banco se dispensa de prestar contas do favorecimento seletivo e privilegiado a determinados grupos econômicos.
Sem dúvida, esta postura do banco na área de divulgação de informação e ambiental — associada ao volume estupendo de recursos despejados nos setores depredadores do meio ambiente — reforça as atuais políticas de flexibilização da política ambiental. Como no caso da Medida Provisória 458 (A “MP da Grilagem”), que também reduz a área destinada à reserva legal na região amazônica.
Outras legislações estão para ser votadas como as que transferem todos os licenciamentos para âmbitos municipais e estaduais, fragilizando ainda mais o enquadramentos dos licenciamentos. Ou ainda as que permitem exploração mineradora em Terras Indígenas (como a que provocou os confrontos recentes no Peru), com dezenas de indígenas mortos. Como se vê, o neoliberalismo está presente em nossas arcaicas — porém liberais quando interessa —, oligarquias rurais.
3. O BNDES dá continuidade à herança neoliberal, da qual o Banco não foi apenas executor, mas também responsável pela formulação
O atual padrão de “inserção competitiva” do Brasil no mundo globalizado advém dos financiamentos e da omissão diante dos problemas obra dos anos de neoliberalismo. Enganam-se aqueles para quem o neoliberalismo está morto. Mais do que neutralizar, interessa aos liberais domesticar o Estado em benefício dos grandes grupos privados. Exemplos do papel ativo do BNDES nesse sentido foram o Programa Nacional de Desestatização, concebido no interior do banco, e a própria formulação da estratégia de “inserção competitiva” no mercado mundial. Mais recentemente, duas situações confirmam e desdobram este papel formulador e ordenador do BNDES no sentido de um desenvolvimento a serviço dos grandes grupos privados.
Em finais dos anos 90, o Banco foi responsável pela formatação dos Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento (ENID), que já apontavam para a necessidade de construção de infraestrutura regional e que, no ano 2000, redundariam na Iniciativa de Integração da Infra-Estrutura Regional Sul Americana (IIRSA). A perspectiva da integração regional adotada a partir de então segue a perspectiva do “regionalismo aberto” preconizada pelo Banco Mundial, voltada para a liberalização do comércio e de investimentos, aprofundando o modelo de inserção competitiva.
São grandes projetos viários, energéticos e de comunicações associados a medidas de “convergência regulatória”, que em verdade favorecem a desregulação, viabilizando a consolidação dos oligopólios privados na região. Os eixos e projetos da IIRSA são voltados para competitividade externa da região e não para gerar interdependência entre os países sul-americanos. Dos 31 projetos prioritários até 2010, oito projetos encontram-se em execução e todos envolvem o Brasil como contraparte, deixando claro também o papel de liderança do país na implementação desta infraestrutura regional de exportação.
Os financiamentos do BNDES na região já superam os do BID, e vão ao sentido de viabilizar, de um lado, a estruturação de corredores de ex-portação e, de outro, a expansão da base territorial do país para a exploração de recursos naturais. Para tal projeto, conta-se com investimentos de empresas brasileiras, que atuam nos países vizinhos, muitas vezes em parceria com empresas locais, como exploradoras de recursos naturais e humanos. Esta tendência à multinacionalização de empresas brasileiras, que se estende neste momento para a África lusófona, encontra exemplos a Odebrecht, Andrade Gutierrez, Camargo Côrrea, Vale do Rio Doce, Petrobras, Eletrobrás, entre outras. Estas empresas reproduzem fora, muitas vezes de forma mais dramática, impactos sociais e ambientais que já produzem no interior do país.
Em outro exemplo do papel ativo do BNDES a serviço dos grandes grupos privados, o banco liderou a organização da empresa Estruturadora Brasileira de Projetos (EBP), que possui como sócios o Banco do Brasil, Banco Espírito Santo, Bradesco, Citibank, Itaú, Santander, Unibanco e Banco Votorantim. O papel da EBP é o de realizar estudos técnicos e elaborar projetos para auxiliar empresas a obterem financiamentos, no âmbito das Parcerias Público-Privadas (PPPs), no valor de até R$ 2 bilhões. O objetivo é o de contribuir na formatação de projetos que sigam especialmente o modelo project finance, onde os ganhos futuros (recebíveis) esperados com o projeto se tornam a principal garantia a ser fornecida pelo tomador de crédito. A EBP busca facilitar e agilizar ainda mais o acesso por grandes grupos econômicos aos recursos, na maioria dos casos, do próprio BNDES.
O banco se compromete, assim, com o desempenho futuro da empresa ao financiar projetos que seguem o modelo em questão. É o caso, por exemplo, do mega-financiamento para os consórcios responsáveis pela construção das usinas de Santo Antônio e Jirau no rio Madeira (foto de abertura da matéria), uma das obras da IIRSA. O Banco financiará mais de 60% do investimento, com um crédito já aprovado que ultrapassa a casa dos R$ 13 bilhões. O financiamento para os consórcios segue o modelo do project finance, comprometendo o BNDES com o cronograma de investimentos da empresa. E a despeito dos sérios e evidentes riscos ambientais, jurídicos e financeiros dos empreendimentos.
4. O BNDES é responsável pela especialização da estrutura produtiva do país e pela ausência de investimentos sustentáveis do ponto de vista ambiental e geradores de ocupações de qualidade
No nosso entender, cabe ao banco desempenhar um papel pró-ativo no sentido de financiar investimentos voltados à diversificação de estrutura produtiva do país, fortalecendo o mercado interno. Não se justifica um banco público de desenvolvimento atuar privilegiadamente sob demanda dos setores exportadores. Reorientar, por exemplo, o atual padrão de desembolsos, em que as grandes empresas recebera, no ano passado, 76% do total dos desembolsos do BNDES e as micro e pequenas empresas receberam apenas 10%. Vale dizer, que mesmo este baixo percentual está inflado, já que o Banco considera micro e pequenas empresas aquelas que faturam até R$ 1,2 milhão e R$ 10,5 milhões, respectivamente. Na Lei Geral de Micro e Pequenas Empresas, os valores são até R$ 240 mil
e até R$ 2,4 milhões, respectivamente.
Com o volume de recursos e com a taxa favorecida de juros com que opera, o BNDES poderia contribuir com uma profunda e positiva transformação do atual quadro do desenvolvimento brasileiro.