sábado, 2 de julho de 2011

China burlou regras de compra de títulos do Tesouro dos EUA

Autor(es): Emily Flitter | Reuters, de Nova York
Valor Econômico - 01/07/2011
 

Finanças: Governo americano alterou norma depois de Pequim comprar mais títulos que o permitido

As regras dos leilões de títulos do Tesouro dos EUA podem não ser parecidas com as da diplomacia de alto risco. Mas uma mudança pouco notada em 2009 no modo como Washington vende sua dívida lança nova luz sobre o delicado jogo de equilíbrio dos EUA com seu maior credor, a China.
Quando o Departamento do Tesouro americano tornou mais restritivas as regras para participação nos leilões de bônus do governo, dois anos atrás, disse que a intenção era meramente modernizar procedimentos ultrapassados.
Mas uma investigação da agência de notícias Reuters constatou que o verdadeiro motivo da mudança foi mais sério: o Tesouro concluiu que a China estava comprando muito mais títulos da dívida do governo americano do que revelava, numa potencial violação às regras dos leilões. Concluiu também que Washington queria divulgar essas compras, mas sem irritar o governo chinês.
Funcionários do Tesouro então trabalharam para manter em silêncio os motivos da mudança nos leilões. O assistente do secretário do Tesouro para os mercados financeiros instruiu seus subordinados a não mencionar o papel de nenhum credor específico no assunto, segundo consta em um e-mail ao qual a Reuters teve acesso.
Indagações feitas à época pela principal entidade de defesa dos interesses dos negociadores de títulos obtiveram a explicação de que a mudança era só "modernização técnica", sem menção à China.
O incidente levanta uma questão sobre o quanto o Tesouro consegue controlar quem compra títulos de dívida dos EUA.
Entidades chinesas detêm pelo menos US$ 1,15 trilhão em títulos de dívida do governo americano e acredita-se que elas respondam por cerca de 26% dos papéis emitidos por Washington, segundo dados do governo americano.
As enormes posições em títulos nas mãos da China são ao mesmo tempo uma boia de salvação e uma vulnerabilidade para Washington. Se os chineses venderem todos os seus títulos de uma só vez, isso debilitaria os mercados e a economia dos EUA pois levaria a uma alta muito rápida das taxas de juros.
Cenários desse tipo vêm sendo discutidos pelas autoridades de Washington há pelo menos um ano. E o desconhecimento da extensão dessas posições dificulta avaliar a alavancagem política da China sobre as finanças dos EUA.
O Tesouro há muito afirma que tem uma base diversificada de investidores e não depende excessivamente de um único comprador para digerir novas emissões de títulos. As evidências de que a China estaria na verdade comprando mais que o revelado lançaria dúvidas sobre essa afirmação.
Os EUA vendem sua dívida para investidores por meio de leilões realizados semanalmente - às vezes até quatro vezes por semana - pelo Departamento da Dívida Pública do Tesouro, em lotes que vão de US$ 13 bilhões a US$ 35 bilhões por vez. Os investidores podem comprar bônus diretamente do Tesouro nos leilões, ou através de qualquer um dos 20 "dealers primários", as instituições financeiras de Wall Street autorizadas a fazer ofertas em nome dos clientes.
O Tesouro limita a quantidade que os licitantes podem adquirir individualmente a 35% de um determinado leilão, pois qualquer um que comprasse mais de 35% de um determinado lote de títulos em um único leilão teria uma participação de controle nesse lote.
No começo de 2009 a China, que usa várias firmas para comprar papéis da dívida, estava fazendo regularmente negócios que tinham o efeito de ocultar bilhões de dólares em aquisições em cada leilão, segundo operadores dos dealers primários e documentos a que a Reuters teve acesso.
Usando um método de compra conhecido como "oferta garantida", a China estava firmando acordos de cavalheiros com os dealers primários para comprar um certo volume de títulos ofertados num leilão sem que aparecesse como licitante, segundo disseram fontes entrevistadas pela Reuters.
Após estabelecida a quantidade de títulos que o licitante garantido queria comprar, o dealer então comprava essa quantidade no leilão, tecnicamente em nome próprio. Para funcionários do governo que acompanham os leilões, isso fazia parecer que o dealer estava comprando títulos com a intenção de agregá-los às próprias carteiras. Tecnicamente, isso não impede a venda posterior desses papéis no mercado secundário, mas influencia o resultado das ofertas no leilão ao ocultar o comprador final.
Na verdade, o dealer simplesmente repassava os bônus para o licitante garantido anônimo ao preço do leilão, tão logo eles fossem emitidos, disseram as fontes.
A prática manteve o verdadeiro tamanho das posições da China oculto das autoridades americanas, segundo dealers do Tesouro entrevistados, e pode ter permitido à China, em algumas ocasiões, comprar participações de controle - mais de 35% - em alguns dos títulos emitidos pelo Tesouro.
O Departamento do Tesouro começou a desconfiar que a China estava rompendo o limite de 35%, segundo documentos internos, embora eles não indiquem se o Tesouro conseguiu confirmar que isso estava ocorrendo. As ofertas garantidas não são ilegais, mas quebrar o limite de 35% seria.
A Circular de Oferta Unificada - documento com regras para os leilões de títulos - diz que qualquer um que conseguir mais de 35% de um único leilão terá sua compra reduzida ao limite de 35%. Aqueles pegos burlando as regras poderão ser impedidos de participar de futuros leilões e poderão ser mencionados à comissão de valores mobiliários americana (SEC, em inglês) ou ao Departamento de Justiça.
Geralmente o Tesouro não comenta sobre investidores específicos, mas uma fonte no departamento disse que a China não foi o único comprador que realizou negócios de ofertas garantidas. Pessoas a par do assunto disseram que a Rússia está entre os licitantes garantidos. Mas as posições totais da Rússia em títulos, embora significativas, representam 2,8% do total da dívida americana em circulação, contra os 25% da China.
Os operadores dos dealers primários não tiveram as mesmas preocupações diplomáticas com o nível das compras chinesas. Mas eles tinham razões para não gostar das ofertas garantidas e começaram a exigir uma mudança. Um operador disse que levou o problema a funcionários do Tesouro pela primeira vez em 2007.
Alguns dealers primários começaram a achar que os negócios eram nebulosos de uma maneira parecida com o escândalo com títulos que envolveu o Salomon Brothers no começo da década de 90. Naquele caso, operadores de corretoras apresentaram lances falsos sob os nomes de outros licitantes em leilões de títulos, com o objetivo de controlar mais de perto os resultados. No processo, suas ofertas alteravam os preços dos leilões.
A ideia de que licitantes ocultos estariam novamente influenciando os preços dos leilões despertou temor parecido nos operadores.
Houve ainda preocupação comercial: os dealers afirmam que, ao tomar conhecimento de que a prática estava ocorrendo em outras firmas, eles ficaram menos confiantes de que poderiam enxergar e entender os padrões gerais de compra no mercado de papéis da dívida americana. Essa visibilidade pode ser um dos maiores benefícios de ser dealer primário, já que o próprio serviço costuma não render grandes lucros diretos.
Alguns operadores dos dealers primários dizem que simplesmente se recusaram a fazer os negócios e acabaram recusando clientes, inclusive a China. Isso irritou colegas que estavam prometendo a clientes negócios de ofertas garantidas.
No começo de 2009, autoridades do Tesouro começaram a discutir o problema, com especial atenção ao comportamento da China, segundo a Reuters constatou em documentos internos.
O ápice de seus esforços foi uma mudança na Circular de Oferta Unificada publicada em 1º de junho de 2009, que eliminou a cláusula que permitia as ofertas garantidas. O secretário do Tesouro, Timothy Geithner, estava em Pequim naquele dia, em reunião com membros do governo chinês em sua primeira visita formal à China após tomar posse.
Não há evidências de que ele tenha discutido a mudança de regra com membros do governo chinês. Uma porta-voz do Departamento do Tesouro disse: "Regulamente reavaliamos e atualizamos as regras de nossos leilões, para garantir a contínua integridade do processo de venda pública. A mudança nos leilões feita em junho de 2009 eliminou algumas ambiguidades nas regras das vendas e aumentou a transparência, o que em última instância beneficia os contribuintes e os investidores".
A mudança nas regras teve um impacto imediato. Nos primeiros leilões realizados após a proibição das ofertas garantidas, um importante medidor subiu muito: o percentual dos chamados licitantes indiretos, aqueles que apresentavam seus lances no leilão através dos dealers primários.
Os licitantes indiretos são vistos como uma medida substituta às compras por bancos centrais estrangeiros, porque esses bancos na maioria das vezes fazem seus lances por meio de dealers primários. Com a eliminação da cláusula do licitante garantido, um número muito maior de compradores foi colocado nessa categoria nos relatórios enviados ao Tesouro.
O título de 7 anos do Tesouro americano, vendido em lotes de US$ 22 bilhões a US$ 28 bilhões por mês de fevereiro a setembro de 2009, teve um percentual médio de lances indiretos de 33% entre fevereiro e maio. Mas a partir de junho, até setembro, a média dos lances indiretos subiu para 63%.
Logo após o Tesouro rever as regras dos leilões, funcionários do governo americano souberam por dealers que alguns licitantes continuavam tentando usar as ofertas garantidas. Segundo documento do Tesouro, um grande cliente pediu a um dealer primário para descobrir se o Tesouro não faria uma exceção à nova regra para ele. O cliente e a instituição financeira não tiverem seus nomes revelados.
Deutsche Bank, Goldman Sachs, JP Morgan, RBS Securities e UBS receberam telefonemas de clientes solicitando acordos secretos de ofertas logo após a mudança de regra, segundo consta de um documento interno do Tesouro.
O Deutsche Bank disse que um cliente cancelou uma oferta. O Goldman Sachs disse ao Tesouro que um grande cliente afirmou que iria recorrer a outros dealers, que no passado fizeram essas negócios, depois que o Goldman se recusou a fazê-los. O JP Morgan perguntou se havia exceções à proibição das ofertas garantidas.
O RBS disse que firmou um negócio com um cliente para uma oferta garantida após a mudança da regra, mas usou uma estrutura diferente e queria saber se ela era legal. O UBS disse ao Federal Reserve de Nova York que seu cliente que fazia ofertas garantidas iria mudar de comportamento e comprar títulos diretamente no mercado secundário após os leilões, segundo consta no documento.
Representantes do Goldman Sachs e UBS não quiseram falar sobre seus casos. O Deustche Bank, o RBS e o JP Morgan não responderam as solicitações de entrevistas.
A mudança ocorreu num momento delicado das relações financeiras entre EUA e China. Pequim, há muito um grande comprador de títulos do governo americano, estava na época abocanhando grandes quantidades de dívida, enquanto Washington sofria com uma grande queda na arrecadação fiscal durante uma dura recessão.
Quase todas as operações de compra de títulos pelo governo chinês são feitas pela Administração Estatal do Câmbio da China (Safe na sigla em inglês), braço do banco central chinês que gerencia as reservas cambiais do país, que incluem grandes volumes de títulos do Tesouro americano.
A Safe, de sua parte, enfrentava pressões na China por suas posições em títulos americanos. Ela foi duramente atingida pelo colapso do Lehman Brothers, banco de investimento que era contraparte da Safe em negócios no mercado overnight dos EUA. E as potenciais perdas da Sade com o colapso dos titãs do crédito imobiliário dos EUA, Fannie Mae e Freddie Mac, provocou tamanha tempestade na China que funcionários do governo repreenderam publicamente os americanos pelos lapsos no gerenciamento financeiro. Funcionários da Safe em Pequim não responderam a solicitações de comentários feitas pela Reuters.
Após o aumento das evidências de que a China estava incomodada com a mudança de regra, autoridades americanas se movimentaram para ajustar o sistema, para compensar parte do aperto das regras. A medida concedeu aos grandes compradores uma maneira de manter um certo anonimato, aumentando a quantidade de títulos possíveis de serem comprados em um único leilão. A antiga exigência estipulava que compras acima de US$ 750 milhões em títulos tinham de ser declarada ao Fed de Nova York. O governo elevou esse limite para US$ 2 bilhões.
A explicação oficial para a eliminação dos licitantes garantidos não mencionou bancos centrais estrangeiros. Ela se concentrou na "modernização técnica" das regras dos leilões. Um funcionário do governo alertou a outros, numa mensagem por escrito, para "não incluir as palavras "China" ou "Safe" nos assuntos de e-mails".
A Securities Industry and Financial Markets Association, a principal entidade dos dealers, solicitou ao Tesouro no início de junho de 2009 que explicasse a mudança. A resposta foi que se constatou que um detalhe das regras para os leilões não se aplicava mais à maneira como as vendas estavam sendo feitas, e assim a regra foi mudada.
Separadamente, o assistente do Tesouro para mercados financeiros, Karthik Ramanathan, disse a subordinados em e-mail: "Por favor, vamos nos ater à "modernização das regras dos leilões" quando solicitações de fora forem feitas a respeito da mudança. Por favor, NÃO enfatizem a parte das ofertas garantidas, nem mencionem investidores específicos". Ramanathan, que deixou o Tesouro em março de 2010 e é hoje vice-presidente sênior e diretor de bônus da Fidelity Investments, não quis fazer comentários sobre o assunto.
(Tradução de Mário Zamarian)

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