terça-feira, 24 de abril de 2012

Preâmbulo às instruções para dar corda no relógio


por Julio Cortázar, em Histórias de Cronópios e de Famas., 1962.
“Quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. Não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que dure porque é de boa marca, suíço com âncora de rubis; não dão de presente somente esse miúdo quebra-pedras que você atará ao pulso e levará a passear. Dão a você — eles não sabem, o terrível é que não sabem — dão a você um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu corpo, que deve ser atado a seu corpo com sua correia como um bracinho desesperado pendurado a seu pulso. Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio; dão a obsessão de olhar a hora certa nas vitrines das joalherias, na notícia do rádio, no serviço telefônico. Dão o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e a certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio aos outros relógios. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.
Instruções para dar corda no relógio: Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão. Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não corremos, e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância.”

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"Os homens assemelham-se a relógios a que se dá corda e trabalham sem saber a razão. E sempre que um homem vem a este mundo, o relógio da vida humana recebe corda novamente, para repetir, mais uma vez, o velho e gasto refrão da eterna caixa de música, frase por frase, com variações imperceptíveis."
(atribuída a Schopenhauer)

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CAPÍTULO QUINTO
Experiências e raciocínios dos dois viajantes


          Micrômegas estendeu cuidadosamente a mão para o local onde se achava o objeto e, avançando dois dedos e retirando-os por medo de enganar-se e depois abrindo-os e fechando-os, apanhou com todo o jeito o navio que carregava os tais senhores, e colocou-o sobre a unha, sem o apertar muito, para não esmagá-lo. “Eis um animal bem diferente do primeiro” – observou o anão de Saturno; o siriano pôs o pretenso animal na palma da mão. Os passageiros e o pessoal da equipagem, que se supunham erguidos por um furacão, e que. se julgavam sobre uma espécie de rochedo, põem-se todos em movimento; os marinheiros apanham pipas de vinho, lançam-nas sobre a mão de Micrômegas, e precipitam-se em seguida. Apanham os geômetras seus esquadros seus sectores, e nativas da Lapônia, e saltam para os dedos de Micrômegas. Tanto fizerem, que este sentiu enfim mover-se qualquer coisa que lhe comichava os dedos: era um bastão ferrado que lhe fincavam no índice; julgou, por aquilo, que saíra qualquer coisa do pequeno animal que ele segurava. Mas não desconfiou de mais nada. O microscópio, que mal fazia discernir uma baleia e um navio, não alcançava seres tão imperceptíveis como os homens. Não pretendo chocar a vaidade de ninguém, mas sou obrigado a pedir às pessoas importantes que façam uma pequena observação comigo: é que, considerando a homens de cerca de cinco pés de altura, não fazemos, à face da terra, maior figura do que faria, sobre uma bola de dez pés de circunferência, um animal que medisse a seiscentésima milésima parte de uma polegada. Imaginai uma substância que pudesse sustentar a terra na mão, e que tivesse órgãos em proporção com os nossos; e bem pode acontecer que haja grande número dessas substâncias: concebei, então, o que não haveriam de pensar dessas batalhas que nos valeram duas aldeias que foi preciso restituir.
          Se algum capitão de granadeiros ler algum dia esta obra, não duvido que mande aumentar, pelo menos dois pés, os capacetes da sua tropa; mas fica avisado de que, por mais que faça, nunca passarão, ele e os seus, de infinitamente pequenos.
          Que maravilhosa habilidade não foi preciso ao nosso filósofo de Sírio para perceber os átomos de que acabo de falar! Quando Leuwenhoek e Hartsoeker viram pela primeira vez, ou julgaram ver, a semente de que nos formamos, não fizeram tão espantosa descoberta. Que prazer não sentiu Micrômegas ao ver moverem-se aquelas pequenas máquinas, examinando-lhes todos os movimentos, seguindo-as em todas as operações! Que de exclamações! Com que alegria pôs um de seus microscópios nas mãos do companheiro de viagem! “Vejo-os! – diziam ambos ao mesmo tempo. – Repara como carregam fardos, como se erguem, como se abaixam!” Assim falando, tremiam-lhes as mãos, pelo prazer de ver objetos tão novos e pelo receio de os perder. O saturniano, passando de um excesso de desconfiança a um excesso de credulidade, julgou perceber que eles trabalhavam na propagação da espécie. Ah! – dizia ele, – peguei a natureza em flagrante. – Mas enganava-se pelas aparências, o que muita vez sucede, quer a gente se sirva ou não de microscópios.

CAPÍTULO SEXTO
Do que lhes aconteceu com os homens.


          Micrômegas, melhor observador que o anão, viu claramente que os átomos se falavam; e fê-lo notar ao companheiro que, envergonhado do seu engano quanto à geração, não quis acreditar que tal espécie pudesse trocar idéias. Tinha o dom das línguas, como o siriano; não ouvia os nossos átomos falarem, e supunha que não falavam. Aliás, como poderiam aquelas criaturas imperceptíveis possuir os órgãos da voz, e que teriam a dizer-se? Para falar, é preciso pensar, ou quase; mas, se pensavam, tinham então o equivalente de uma alma. Ora, atribuir um equivalente de alma a uma espécie daquelas, parecia-lhe absurdo.           — Mas – observou Micrômegas – ainda há pouco supunhas que eles praticavam o amor. Será que julgas que se possa praticar o amor sem pensar e sem preferir alguma palavra, ou pelo menos sem fazer-se compreender? Acha, aliás, que seja mais difícil fazer um raciocínio. que fazer um filho? Quanto a mim, um e outro me parecem grandes mistérios.
          — Já não ouso nem crer nem negar – disse o homúnculo, – não tenho mais opinião. Tratemos primeiro de examinar esses insetos, arrazoaremos depois.
          — Muito bem dito – retrucou Micrômegas. Em seguida tirou do bolso uma tesourinha, com que cortou as unhas e, com uma lasca da unha do polegar fabricou uma espécie de trompa acústica, que era como um vasto funil cujo bico aplicou no ouvido. A boca do funil envolvia o navio e a toda a equipagem. A voz mais fraca penetrava nas fibras circulares da unha, de modo que, graças à sua indústria, pôde o filósofo lá do alto ouvir perfeitamente o zumbido dos insetos cá de baixo. Em poucas horas, conseguiu distinguir as palavras, e afinal compreender o francês. O anão fez o mesmo, embora com mais dificuldade. O pasmo dos viajantes redobrava a cada momento. Ouviam insetos falarem com muito bom senso: esse capricho da natureza afigurava-se-lhes inexplicável Bem podeis imaginar como Micrômegas e o seu anão ardiam de impaciência por travar conversa com os átomos.
          Temiam que a sua voz de trovão, e sobretudo a de Micrômegas, ensurdecesse os insetos, sem ser ouvida. Cumpria diminuir-lhe a força. Puseram na boca umas espécies de palitos cujas pontas afiladas vinham dar perto do navio. O siriano tinha o anão sobre os joelhos, e o navio com a equipagem sobre uma unha. Inclinava a cabeça e falava baixinho. Afinal, por meio destas e de outras precauções, começou assim o seu discurso:
          “Insetos invisíveis, que a mão do Criador se comprouve em fazer brotar no abismo do infinitamente pequeno, agradeço a Deus por se haver dignado desvendar-me segredos que pareciam impenetráveis. Na minha Corte, talvez não se dignem olhar-vos; mas eu não desprezo ninguém, e ofereço-vos a minha proteção”.
          Se alguém chegou ao cúmulo do espanto, foram sem dúvida as pessoas que ouviram tais palavras. Não podiam adivinhar de onde partiam. O capelão de bordo rezou exorcismos, os marinheiros praguejaram, e os filósofos do navio elaboraram um sistema; mas, por mais sistemas que fizessem, não atinavam com quem lhes falava. O anão de Saturno, que tinha a voz mais suave que a de Micrômegas, informou-lhes então com quem estavam tratando. Contou-lhes a partida de. Saturno, disse-lhes quem era o senhor Micrômegas, e, depois de os ter lamentado por serem tão pequenos, perguntou-lhes se sempre haviam estado naquela miserável condição tão vizinha do aniquilamento, o que faziam num globo que parecia pertencer às baleias, se eram felizes, se se multiplicavam, se tinham uma alma, e mil outras questões dessa natureza.
          Um sábio do grupo, mais audaz que os outros e chocado de que duvidassem da sua alma, observou o interlocutor por intermédio de pínulas assestadas sobre um esquadro, fez duas miras e, na terceira, assim lhe falou:
          — Julga então, senhor, só porque tem mil toesas da cabeça aos pés, que é um...
          — Mil toesas! – exclamou o anão. – Meu Deus! Como pode ele saber a minha altura? Mil toesas! Não se engana por uma polegada. Como! Esse átomo mediu-me! É geômetra, conhece as minhas dimensões; e eu, que o vejo através de um microscópio, ainda não conheço as suas.
          — Sim, medi-o – disse o físico – e medirei também o seu grande companheiro.
          Aceita a proposta, deitou-se Sua Excelência ao comprido; pois, se se pusesse de pé, ficaria com a cabeça muito acima das nuvens. Os nossos filósofos plantaram-lhe uma grande árvore num lugar que o doutor Swift nomearia, mas que me guardo de chamar pelo nome, devido a meu grande respeito ás damas. Depois, por uma seqüência de triângulos, concluíram que aquilo que eles viam era com efeito um jovem de cento e vinte mil pés de altura.
          Micrômegas pronunciou então estas palavras:
          “Reconheço, mais do que nunca, que nada devemos julgar por sua grandeza aparente. Ó Deus, que destes uma inteligência a substâncias que parecem tão desprezíveis, o infinitamente pequeno vos custa tão pouco como o infinitamente grande; e, se é possível que haja seres ainda mais pequenos do que estes, podem ainda ter um espírito superior ao daqueles soberbos animais que vi no céu e cujo pé bastaria para cobrir o globo a que desci”.
          Respondeu-lhe um dos filósofos que ele poderia com toda a segurança acreditar que há de fato seres inteligentes muito menores que o homem. Contou-lhe, não tudo o que Virgílio diz de fabuloso sobre as abelhas, mas o que Swammerdam descobriu, e o que Réaumur dissecou. Disse-lhe, enfim, – que há animais que estão para as abelhas como as abelhas estão para os homens, e como Micrômegas estava para aqueles imensos animais a que se referira, e como aqueles estão para outras substâncias, diante das quais não passam de átomos. Pouco a pouco a conversa se tornava interessante, e Micrômegas assim falou.

Micrômegas (1752)
Voltaire (1694-1778)

CAPÍTULO SÉTIMO
Conversação com os homens.


          — Ó átomos inteligentes, em quem o Ser Eterno se comprazeu em manifestar seu engenho e poderio, deveis sem dúvida gozar das mais puras alegrias sobre o vosso globo; pois, tende tão pouca matéria e parecendo puro espírito, deveis passar a vida a amar e a pensar, que é o que constitui a verdadeira vida dos espíritos. A verdadeira felicidade, que não vi em parte nenhuma, com certeza é aqui que existe.
          A tais palavras, todos os filósofos abanaram a cabeça; e um deles, mais franco que os outros, confessou de boa fé que, excetuando um pequeno número de habitantes muito pouco considerados, o resto é tudo uma assembléia de loucos, de maus e de infelizes.
          — Nós temos mais matéria do que é necessário – disse ele – para fazer muito mal, se o mal vem da matéria, e temos espírito em demasia, se o mal vem do espírito. Não sabeis, por exemplo que, no instante em que vos falo, há cem mil loucos da nossa espécie, cobertos de chapéus, que matam cem mil outros animais cobertos de um turbante, ou que são massacrados por estes e que, quase por toda a terra, é assim que se faz, desde tempos imemoriais?
          O siriano estremeceu e perguntou qual poderia ser o motivo dessas terríveis querelas entre tão mesquinhos animais.
          — Trata-se – disse o filósofo – de uma porção de lama do tamanho de vosso calcanhar. Não que algum desses milhões de homens que se exterminam pretenda um palmo que seja dessa lama. Trata-se apenas de saber se pertencerá a certo homem a que chamam Sultão, ou a outro homem a que chamam César, não sei por quê. Nenhum dos dois viu, ou jamais verá, o pedacinho de terra em questão, e quase nenhum desses animais que mutuamente se degolam já viu algum dia o animal pelo qual se degolam.
          — Infelizes! – exclamou o siriano indignado. – Pode-se acaso conceber mais furiosa loucura? Vem-me até vontade de dar três passos e esmagar com três patadas esse formigueiro de ridículos assassinos.
          — Não vos deis a esse incômodo; eles já trabalham bastante para a sua própria ruína. Ficai sabendo que, passados dez anos, já não resta nem a centésima parte desses miseráveis, e, mesmo que não tivessem puxado da espada, a fome, a fadiga ou a intemperança os levam ,a quase todos. Aliás, não é a estes que é preciso punir, mas sim a esses bárbaros sedentários que, do fundo de seu gabinete, ordenam, durante a digestão, o massacre de um milhão de homens, e em seguida o agradecem solenemente a Deus.
          O viajante sentia-se apiedado da pequena raça humana, na qual descobria tão espantosos contrastes.
          — Já que pertenceis ao pequeno número dos sábios – disse-lhes ele – e aparentemente não matais a ninguém por dinheiro, dizei-me em que vos ocupam então.
          — Dissecamos moscas – respondeu o filósofo, – medimos linhas, encordoamos números, pomo-nos de acordo acerca de dois ou três pontos que entendemos, e disputamos sobre dois ou três mil que não entendemos.
          Ocorreu então ao siriano e ao companheiro a fantasia de interrogar aqueles átomos pensantes sobre coisas que ambos conheciam.
          — Quanto contais – Indagou Micrômegas – da estrela da Canícula à grande estrela dos Gêmeos?
          — Trinta e dois graus e meio – responderam todos ao mesmo tempo.
          — Quanto contais daqui até a lua?
          — Sessenta semidiâmetros da terra, em números redondos.
          — Quanto pesa o vosso ar?
          Supunha confundi-los nesse ponto, mas todos responderam que o ar pesa cerca de novecentas vezes menos que igual volume d’água e dezenove mil vezes menos que o ouro.
          O anãozinho, de Saturno, atônito das suas respostas, sentiu-se tentado a tomar como feiticeiros àqueles mesmos a quem havia negado uma alma quinze minutos antes. Afinal lhes disse Micrômegas:
          — Já que sabeis tão bem o que se acha fora de vós, decerto sabeis ainda melhor o que tendes por dentro. Dizei-me o que é a vossa alma e como formais as vossas idéias. Os filósofos falaram todos ao mesmo tempo, como antes, mas foram de diferentes opiniões. O mais velho citava Aristóteles, outro pronunciava o nome de Descartes, este o de Malebranche, aquele o de Leibnitz, aqueloutros o de Locke. Um velho peripatético disse em voz alta com toda a segurança: A alma é uma enteléquia, razão pela qual tem o poder de ser o que é. É o que declara expressamente Aristóteles, página 633 da edição do Louvre: “entelequia esti” etc.
          Não entendo muito bem o grego – disse o gigante.
          Nem eu tampouco – replicou o inseto filosófico.
          — Por que então – tornou o siriano – citais um certo Aristóteles em grego?
          É que – replicou o sábio – cumpre citar aquilo de que não se compreende nada na língua que menos se entende.
          O cartesiano tomou a palavra e disse:
          — A alma é um espírito puro, que recebeu no ventre da mãe todas as idéias metafísicas, e que, ao sair de lá, é obrigada a ir para a escola e aprender de novo tudo o que tão bem sabia é que não mais saberá!
          — Então não valia a pena – retrucou o animal de oito léguas – que a tua alma fosse tão sábia no ventre de tua mãe, para ser tão ignorante quando tivesses barba no queixo. Mas que entendes por espírito?
          — Bela pergunta! – exclamou o raciocinante. – Não tenho disso a mínima idéia: dizem que não é matéria.
          — Mas sabes ao menos o que é a matéria?
          — Perfeitamente – respondeu o homem. – Por exemplo, esta pedra é cinzenta, e de determinada forma, tem as suas – três dimensões, é pesada e divisível.
          — Pois bem – disse o siriano – e essa coisa que te parece divisível, pesada e cinzenta, saberás dizer-me exatamente o que seja? Tu lhe vês alguns atributos; mas o fundo da coisa, acaso o conheces?
          — Não – disse o outro.
          — Não sabes, pois, o que é a matéria.
          Então o senhor Micrômegas, dirigindo a palavra a outro sábio, a quem equilibrava sobre o polegar, perguntou-lhe o que era a sua alma, e o que fazia.
          — Absolutamente nada – respondeu o filósofo malebranchiste, – é Deus que faz tudo por mim; vejo tudo em Deus, faço tudo em Deus: é Ele quem faz tudo, sem que eu me preocupe.
          — É o mesmo que se não existisses – tornou o sábio de Sírio. – E tu, meu amigo – disse a um leibnitziano que ali – se achava, – que vem a ser a tua alma?
          — É – respondeu o leibnitziano – um ponteiro que indica as horas, enquanto o meu corpo toca o carrilhão; ou, se quiserdes, é ela quem carrilhona, enquanto o meu corpo marca a hora
; ou então, é minh’alma o espelho do universo, e meu corpo a moldura do espelho: isso é bem claro.
          Um minúsculo partidário de Locke achava-se ali perto; e quando afinal lhe dirigiram a palavra:
          — Eu não sei como é que penso – respondeu, – mas sei que nunca pude pensar senão com o auxilio de meus sentidos. Que haja substâncias imateriais e inteligentes, eu não duvido; mas também não nego que Deus possa comunicar pensamento à matéria. Venero o poder eterno, não me cabe limitá-lo; nada afirmo, contento-me em acreditar que há mais coisas possíveis do que se pensa.
          O animal de Sírio sorriu: não achou que fosse aquele o menos sábio; e o anão de Saturno teria abraçado o sectário de Locke, se não fora a extrema desproporção entre ambos. Mas, por desgraça, havia ali um animalículo de capelo que cortou a palavra a todos os animalículos filosofantes: disse que sabia o segredo de tudo, o qual se achava na Suma de Santo Tomás; mediu de alto a baixo os dois habitantes celestes; sustentou-lhes que as suas pessoas, os seus mundos, sois e estrelas, tudo era feito unicamente para o homem. A isto, os nossos dois viajantes tombaram um nos braços do outro, sufocados de riso, esse riso inextinguível que, segundo Homero, é próprio dos deuses; seus ombros e ventres agitavam-se e, nessas convulsões, o navio que Micrômegas trazia na unha caiu no bolso das calças do saturniano. Os dois o procuraram por muito tempo; afinal encontraram e reajustaram tudo convenientemente. O siriano retomou os pequenos insetos; falou-lhes de novo com muita bondade, embora no íntimo se achasse um tanto agastado de ver que os infinitamente pequenos tivessem um orgulho quase infinitamente grande. Prometeu-lhes que redigiria um belo livro de filosofia, escrito bem miudinho, para seu uso, e que, nesse livro, veriam eles o fim de todas as coisas. Com efeito, entregou-lhes esse volume, que foi levado para a Academia de Ciências de Paris. Mas, quando o secretário o abriu, viu apenas um livro em branco. – Ah! bem que eu desconfiava... – disse ele.


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