segunda-feira, 9 de abril de 2012

O boi ao lado é verde


Veículo:
ÉPOCA 
Editoria:
TEMPO  
Data:
07/04/2012 
Assunto:
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Um grupo brasileiro é o primeiro do mundo a receber o selo socioambiental para a pecuária. Será que essa certificação vai pegar?


ALINE RIBEIRO


A fazenda São Marcelo, de Mato Grosso, recebeu em março a visita de dois representantes da marca italiana Gucci. Grandes compradores de couro, eles estavam interessados numa característica única do produto de lá. Essa fazenda e outras três propriedades, todas do grupo JD, são as primeiras do mundo a receber o selo verde para pecuária. É um atestado de que a propriedade cria suas reses dentro da lei. Não derruba árvores sem autorização. Registra todos os funcionários. Não mata a onça que come os bezerros. E ajuda a recuperar a mata rala do entorno dos rios. Não se trata de caridade. O objetivo é agradar ao exigente mercado externo, cada vez mais atento ao comportamento dos fornecedores. "São questões absolutamente fundamentais para o negócio", afirma Péricles Salazar, presidente da Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo). "Precisamos produzir com a preservação da floresta."


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SOMBRA E ÁGUA FRESCA
Animais do grupo JD em fazenda em Mato Grosso. Eles pastam ao lado de uma floresta. E recebem cuidados especiais para não ficarem estressados


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Um terço do rebanho brasileiro está na Amazônia. Hoje, 80% da área desmatada dá lugar a pastagens. A cada minuto, 1,4 hectare de floresta (quase um campo e meio de futebol) é convertido em pasto. Em 2009, com um levantamento feito pela ONG Greenpeace, o Ministério Público Federal (MPF) do Pará entrou com uma ação contra 32 fazendas e frigoríficos e recomendou a 69 empresas que não comprem produtos de áreas de desmatamento. Grandes clientes, como a Nike, suspenderam a importação de couro da região. As redes Carrefour, Pão de Açúcar e Walmart fizeram um acordo com o MPF para montar esquemas próprios de auditoria da origem da carne.


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Para conseguir o selo, é preciso atender a 136 critérios ambientais e sociais. Até pensar no bem-estar do animal


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Não havia até agora um sistema com verificação externa. Nenhuma das medidas adotadas de lá para cá resolvera as questões essenciais: acompanhar a vida do boi do nascimento à morte e ir a campo comprovar que o animal não vivia numa propriedade com desmatamento ou trabalho irregular. A cadeia da pecuária é complexa e sujeita a fraudes. É comum o gado ser criado numa área ilegal (como terras públicas griladas), vendido para uma fazenda regularizada e, em seguida, repassado ao frigorífico sem suspeitas. A nova certificação, elaborada pela Rede de Agricultura Sustentável (RAS), uma entidade latino-americana de organizações conservacionistas, exige uma auditoria independente para verificar cada etapa da vida do boi e ainda envia fiscais para conferir as práticas da fazenda certificada.

Obter o selo foi um trabalho árduo. É preciso atender a 136 critérios, da redução da emissão de gases do efeito estufa ao bem-estar do animal. As fazendas recém-certificadas, quatro propriedades do grupo JD, ficam em Mato Grosso. Foi necessário mais de um ano de lição de casa antes de as áreas receberem o atestado. Para entender o nível de detalhe dos pedidos: o grupo precisou comprovar que a tinta usada nas embalagens da carne não contém chumbo, um componente tóxico. Chamou seus fornecedores, inclusive prestadores de serviços eventuais, para reuniões a fim de rever processos. Todos os funcionários - até o vizinho que ajuda vez ou outra no conserto das cercas - tiveram de ser contratados. Ninguém mais trabalha ali sem protetor auricular, luvas ou capacete, conforme a necessidade. No aspecto ambiental, foi preciso mostrar um plano de recuperação das matas ao redor das nascentes, além de programas de preservação. "A certificação antecipa os desejos dos clientes, hoje mais criteriosos em relação às práticas sociais e ambientais dos produtores", afirma Arnaldo Eijsink, presidente do grupo JD.

O selo da RAS existe desde 1992 e está hoje em mais de 250 mil fazendas em 33 países. São propriedades agrícolas que produzem 30 diferentes culturas, entre elas café e cacau. É a primeira vez no mundo que uma fazenda de pecuária recebe a certificação. "Já há outras propriedades interessadas", afirma Maurício Voivodic, secretário executivo do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), pioneiro na certificação da madeira e único autorizado a emitir o selo da pecuária no Brasil. "A certificação mostra que é possível produzir com menos impacto e ainda ser recompensado por isso." No caso do café, o preço do produto aprovado pela RAS costuma ser entre 20% e 30% superior ao do mercado.

Um selo sozinho não acabará com as irregularidades da pecuária. Para que a carne chegue com identificação no rótulo até o consumidor final, os frigoríficos também devem se submeter às verificações. Há obstáculos. "Não temos a menor condição de certificar os frigoríficos antes de acabar com o abate clandestino, ainda comum em algumas regiões", afirma Salazar, da Abrafrigo. "Existe um nicho de mercado interessado nestes itens (certificados), mas o povão quer mesmo é pagar um preço menor." Eijsink, do grupo JD, recorre a uma metáfora rural para sustentar as vantagens da certificação. "O boi que chega primeiro ao rio é o que bebe água limpa. O que vem depois só encontra sujeira." Além da maior segurança na operação - imune a possíveis multas ambientais ou processos trabalhistas -, ele acredita que, a longo prazo, terá mais competitividade no mercado.
O namoro com a Gucci é um sinal.

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