O ciclo político-eleitoral democrático brasileiro, em todos os níveis administrativos, costuma ser dividido em duas metades: dois primeiros anos de contenção de gastos, restrições orçamentárias e formulação de políticas e projetos; e dois anos de realização de investimentos, inauguração de obras e consolidação de políticas públicas novas. Faz parte também do senso comum político dizer que uma eleição recente traz com ela um capital político que deve ser usado logo em início de mandato para implementar as medidas restritivas características da primeira metade do ciclo.
Um caso excepcional - inaugural, seria possível dizer - foi o do início do período FHC, em que foram reunidas forças e condições suficientes para enfim suplantar o grande consenso social representado pelo nacional-desenvolvimentismo, nome sob o qual se costuma chamar o modelo de desenvolvimento e de sociedade que vigorou no país entre as décadas de 1930 e 1980. A real continuidade do governo Lula em relação ao anterior está exatamente nisso: continuidade no movimento de desmonte do nacional-desenvolvimentismo e na construção de um novo modelo. O governo Lula realizou em definitivo a adaptação do país a uma economia global movida pela gangorra EUA-China e fincou no novo consenso a diretriz de que crescimento econômico tem de ser acompanhado de diminuição em algum grau de desigualdades sociais. [faltou o nome.]
Nesse contexto, o governo de Dilma Rousseff representa uma "normalização" do novo modelo social do país. E, no entanto, as condições do período Lula não vigoram mais. Seja por imposição das circunstâncias, seja de moto próprio, o governo de Dilma já introduziu mudanças, especialmente na política econômica.
Para começar, o governo de Dilma Rousseff não está em condições de conter gastos nos dois primeiros anos. As razões são várias. Vão desde gastos contratados no governo Lula que são agora incontornáveis até todas as obras necessárias de infraestrutura - com destaque para a Copa do Mundo de 2014 e para a Olimpíada de 2016 -, passando por coisas ainda mais complicadas como o aumento relativo da conta de juros. E, ao mesmo tempo, os meios para conter gastos são limitados porque um grande arrocho significaria nada menos que a ruptura do grande pacto político do governo Lula.
O que significa que também o outro elemento do senso comum político, o prestígio de uma presidenta em início de mandato, não está sendo usado para impor medidas restritivas, mas para resolver uma equação política muito mais ampla e difícil, herdada do período Lula. A expressão hoje mais evidente dessa equação está justamente na política econômica.
Segundo o amplíssimo pacto herdado do governo Lula, a sustentação da coalizão de poder depende de um ritmo de crescimento econômico semelhante ao da média dos anos Lula, em torno de 4%. Trata-se de um projeto político que tem como alternativa produzir crescimento econômico ou fracassar.
Ao mesmo tempo, tanto o ritmo de crescimento como o nível de gastos públicos necessários para manter o pacto político ameaçam levar a inflação para níveis social e economicamente perigosos. E o objetivo de manter a inflação sob controle não está e não pode estar em causa na lógica do novo consenso social brasileiro. O que põe outra dura alternativa: controlar a inflação ou fracassar.
Manter o crescimento com inflação sob controle. Esse foi o pacto de Lula com o agora chamado "povão". E também com todos os outros tipos de "povos", incluindo-se aí os atores que podem ser chamados de "grandes pactuadores": partidos, centrais sindicais, empresariado e mercado financeiro. É para resolver essa difícil equação que o atual governo foi eleito e para isso está usando o seu prestígio de início de mandato. Isso exige, de um lado, ganhar o tempo necessário de convencer de que sua política anti-inflacionária será efetiva; e, de outro, organizar em novas bases o condomínio político no poder.
Não por acaso, o governo de Dilma Rousseff vive o paradoxo de ter a maior base de apoio congressual desde a primeira eleição direta para presidente depois da ditadura militar, a de Fernando Collor, em 1989, e de ser ao mesmo tempo o mais limitado em termos de margem de manobra e de ação. Os acordos de Lula com os grandes pactuadores não podem ser mantidos nos mesmos níveis generosos em que foram celebrados. Não só porque são acordos de demanda crescente, mas porque não podem ser ampliados indefinidamente para incluir novos integrantes. E, apesar do atual governo já se caracterizar por um "excesso de adesão", novos candidatos a aderir não faltam.
Ao mesmo tempo, os acordos celebrados por Lula são incontornáveis. Até onde se pode ver, é isso o que faz com que a equação política e a equação econômica do governo Dilma se espelhem. À necessidade de refazer os acordos com partidos, centrais sindicais, empresariado e mercado financeiro corresponde uma política econômica que precisa produzir uma nova calibragem de câmbio, juros e medidas "macroprudenciais", e, subsidiariamente, manter a política de aumentos reais para o salário mínimo.
Não é fácil produzir uma imagem íntegra e uniforme do que seria essa política econômica do governo de Dilma Rousseff. Mas é possível tentar produzir uma construção hipotética com algum grau de coerência, levando-se em conta os condicionamentos políticos e econômicos mais gerais e o que se pode depreender das declarações e ações dos principais atores envolvidos. No que se segue, pretendo tentar projetar o que seria um quadro mais ou menos uniforme de pensamento dentro do governo, sem entrar no mérito nem da coerência interna muito menos da correção dos pressupostos do raciocínio.
A ideia geral parece ser a de calibrar cada um dos elementos de política econômica de maneira a não comprometer nem o controle da inflação nem uma meta mínima de crescimento. Ou, em termos políticos, repactuar os grandes acordos sem prejudicar demais nenhum dos grandes pactuadores, buscando mostrar que o equilíbrio de forças anterior será mantido, ainda que em bases mais modestas.
Uma calibragem desse tipo explicaria, por exemplo, por que o salário mínimo não teve o aumento exigido pelas centrais sindicais, mas manteve a perspectiva de reajustes futuros. Explicaria que o governo tenha abandonado o piso de R$ 1,70 para o dólar, mas não atue no sentido de deixar o real se valorizar sem qualquer limite. Explicaria que a taxa de juros tenha deixado de ser o mecanismo por excelência de combate à inflação, mas que, ao mesmo tempo, continuará a de ser utilizado, ainda que com moderação. Explicaria que as medidas de restrição do crédito sejam tomadas paulatinamente, de modo a não apertar demais o torniquete no consumo.
Explicaria ainda os diferentes discursos de figuras de proa do governo. Na visita à China, a própria presidenta criticou o nível demasiadamente alto das taxas de juros. Quase ao mesmo tempo em que o presidente do Banco Central sinalizava um aumento da taxa. Muito antes, o ministro da Fazenda já tinha sido a face pública contra o aumento do salário mínimo para além dos limites propostos pelo governo. A crítica do presidente do BNDES à valorização do real em uma reunião de empresários parece não ter sido combinada. Mas poderia ter sido.
Com bons fundamentos ou não, espera-se que as importações cumpram um papel relevante na estabilização de preços. Inclusive porque a aposta no efeito-câmbio tornaria desnecessárias, nesse raciocínio, elevações adicionais significativas das taxas de juros, cujos efeitos nocivos para a meta de alcançar um crescimento econômico de pelo menos 4% em 2011 e em 2012 seriam significativamente maiores.
Além disso, esse raciocínio da calibragem de vetores diz que elevações das taxas de juros no atual contexto mundial seriam simplesmente contraproducentes. Além de inibir o crescimento, teriam como efeito apenas trazer mais capital global excedente, o que resultaria, por sua vez, em novas valorizações do real. Em sentido contrário, espera-se que elevações moderadas das taxas de juros possam significar até mesmo uma queda futura nas taxas reais, se confirmada a tendência de alta das taxas nos EUA e na Europa.
A calibragem de câmbio e juros, é delicada e não virá, é certo, sem tensões e problemas. Para os defensores da versão do sistema de metas implantado em 1999, as novidades pretendidas representam apenas a ilusão de querer assobiar e chupar cana ao mesmo tempo. E é uma possibilidade real que o governo de Dilma Rousseff venha de fato a perder essa batalha político-ideológica e se veja obrigado a realizar um ajuste "ortodoxo", com elevações substanciais das taxas de juros, mesmo sem prejuízo da utilização dos demais instrumentos de política fiscal e regulatória. Mas, pelo menos até agora, parece consolidada dentro do governo a ideia de que essa estratégia, a "ortodoxa", seria um "tiro no pé". E, do ponto de vista do "pacto de crescimento" firmado por Lula, um suicídio político.
Porque essa peculiar estruturação da política econômica pelos imperativos de administração dos grandes acordos do período Lula é expressão do que se pode chamar de uma "pemedebização" mais geral da política no país. Ou seja, quando, no limite, todos estão incluídos, o sistema só pode continuar a funcionar com base na calibragem de medidas contraditórias e conflitantes. Ao mesmo tempo, quando cabe ao governo administrar todas as demandas e ajustar todos os vetores, a sua capacidade de gerenciamento e articulação de políticas coerentes se torna cada vez mais difícil.
Em uma cultura política democrática consolidada, o surgimento de vetores e o embate entre eles é realizado em grande medida no debate público. Porque, em um sistema democrático minimamente polarizado, cabe à oposição vocalizar insatisfações, críticas e novas demandas. Sem oposição, à direita e à esquerda, não há debate real de alternativas. E já faz um bom tempo que simplesmente não há oposição.
O que se tem é um contingente cada vez mais fragmentado de grupos preparados para assumir o poder, caso este lhe caia no colo. Grupos que não têm outra perspectiva de atuação política senão a expectativa de que o governo de Dilma Rousseff fracasse - coisa em que, hoje, ninguém acredita seriamente. Essa "oposição passiva" é típica de uma pemedebização mais geral da política, em que não há reais polarizações, mas apenas um caldo de cultura comum indistinto, partilhado por todos os atores.
O já mencionado "excesso de adesão" que caracteriza o governo de Dilma Rousseff é parte desse processo de pemedebização. É certo que, em um primeiro momento, o "excesso de oferta" estabelece o governo na posição vantajosa de poder "selecionar" os candidatos que lhe sejam preferíveis. Mas isso não significa ter controle sobre os resultados, já que não é possível prever que atitude terão os excluídos.
É certo que uma a regra de ouro da seleção no "excesso de oferta" é não deixar de fora partidos inteiros - o que é arriscado demais para o modelo porque significaria uma "exclusão organizada". Mas, mesmo respeitada a regra, não é óbvio que os excluídos permanecerão pacientemente no deserto, à espera de uma brecha para voltar ao jogo - embora, na lógica mais geral da pemedebização, essa esteja longe de ser uma possibilidade desprezível.
Talvez seja esse, no futuro, o sentido do novo partido, o PSD. Se for possível ainda aderir em condições favoráveis, talvez se torne mais um partido da base. Se não for possível (o que é mais que provável a esta altura), pode vir a ser um partido para recolher os excluídos e perdedores. Se o PMDB já foi chamado de "partido ônibus" por carregar quem quisesse pagar a passagem, o PSD pode já ser chamado de "partido ponto de ônibus". Um partido à espera do ônibus que passar, seja ele qual for. Se o novo partido indicar uma tendência do sistema, o futuro mostra apenas que virá mais do mesmo. Mais da já surrada pemedebização da política brasileira.
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