quarta-feira, 14 de setembro de 2011

2000 Waimiri-Atroari Desaparecidos na Ditadura



É justo e necessário o país se mobilizar pelos desaparecidos políticos da Ditadura Militar no Brasil (1964-1984). Entretanto, por que não há o mesmo interesse na busca dos índios desaparecidos durante a Ditadura Militar por se oporem a política do governo sobre seus territórios?
Em 1968, o Governo Militar invadiu com a rodovia BR-174, Manaus – Boa-Vista, o território Kiña (Waimiri-Atroari). Em 1975, pelo menos 2000 pessoas já haviam desaparecido, todos pertencentes ao povo Kiña. Isso porque se opunham ao processo de invasão de seu território imposto pelos Militares.
O massacre ocorreu em etapas. Na primeira delas quem esteve a frente da construção da rodovia foi o Departamento de Estradas e Rodagem / Amazonas (DER/AM). Os relatórios mensais dos trabalhos sempre se faziam acompanhar com pedidos de armas e munição como este:
“Vimos pelo presente, solicitar seu especial obséquio no sentido de ser expedida pelo S.F.I.D.T., uma autorização para compra de 6 revólveres “Taurus” calibre 38 duplo (...), 2 espingardas calibre 16, 53 caixas de cartuchos calibre 16, 16 caixas de balas calibre 38 longo, 25 caixas de cartuchos calibre 20, e 2 caixas de balas calibre 32 simples.
Esclarecemos, outrosssim, que referida munição será uttilizada como medida de segurança e de certo modo manutenção (...)”. (Of.DER-AM/DG/No. 170/68 de 04 de abril de 1968. Ass. pelo Eng. Otávio Kopke de Magalhães Cordeiro, Diretor Geral, ao Major Luiz Gonzaga Ramalho de Castro).
Oficialmente a FUNAI era encarregada da política indigenista, mas logo ficou evidente que a a área Waimiri-Atroari ficaria sob o controle militar.
A segunda etapa se inicia no ano seguinte. Em junho de 1968, o Pe. João Calleri, nomeado pela FUNAI para a direção dos trabalhos de atração, fez um plano minucioso para os primeiros contatos e posterior fixação dos índios fora do roterio da BR-174. No entanto, foi obrigado pelo Major Mauro Carijó, Diretor do DER/AM, a mudar o seu plano o que causou a trágica morte do Pe Caleri e seus auxiliares, em outubro de 1968. Isso possibilitou uma intensa campanha de repúdio aos Waimiri-Atroari criando uma situação favorável à intervenção militar brutal.
O Governador do Amazonas, Danilo Areosa, pedia providencias para garantir “a construção da estrada através do território indígena, a qualquer custo”, considerando o índio um inútil, que precisava “ser transformado em ser humano útil à Pátria”. E prosseguia: “os silvícolas ocupam as áreas mais ricas de nosso Estado, impedindo a sua exploração, com prejuízos incalculáveis para a receita nacional, impossibilitando a captação de maiores recursos para a prestação de serviços públicos”. (A Critica / Manaus 27 de novembro de 1968). Seu colega, Governador de Roraima, Fernando Ramos Pereira, completou: “Sou de opinião que uma área rica como essa não pode se dar ao luxo de conservar meia dúzia de tribos indígenas atravancando o seu desenvolvimento”.(Resist. Waimiri-Atroari / Marewa / Itacoatiaria / 1983, pg 6).

No final de 1968 o Comando Militar da Amazônia instalou um quartel no Igarapé Sto. Antonio do Abonari, que passou a controlar a vida e o destino dos índios. A partir daí a FUNAI se tornou apenas um joguete do Governo Militar a serviço do 6º BEC - Batalhão de Engenharia e Construção.
O abastecimento de armas e munição ficou a cargo do Exército, não demandando mais autorização especial. Trabalhadores, soldados e funcionários da FUNAI invadiam a área indígena enpunhando armas e utilizado-as contra os índios. Revólveres, metralhadoras, cercas elétricas, bombas, dinamite e gás letal, foram algumas das armas utilizadas pelo Exécito na guerra contra os índios durante a construção da BR-174.
Entre 1972 e 1975 a população Kiña reduziu de 3.000 (estimativa do P. Calleri em 1968, confirmada por levantamento mais minucioso da FUNAI em 1972) para menos de 1.000 pessoas, sem que a FUNAI e os militares apresentassem as causas dessa depopulação. Esses 2.000 Kiña desapareceram sem que fosse feito um só registro de morte. Durante o processo de alfabetização desenvolvido por nós e continuado pelo lingüista Márcio Silva, os Waimiri-Atroari tiveram, em curto período, uma das raras oportunidades de revalarem o que o seu povo sofreu durante a Ditadura, sofrimento que nenhum outro segmento da sociedade brasileira passou.
Desapareceram nove aldeias na margem esquerda do Médio Rio Alalaú; pelo menos seis aldeias no Vale do Igarapé Sto. Antonio do Abonari; uma na margem direita do Baixo Rio Alalaú; três na margem direita do Médio Alalaú; as aldeias do Rio Branquinho, que não aparecem nos relatórios da FUNAI; e pelo menos cinco aldeias localizadas sobre a Umá, um varadouro que ligava o Baixo Rio Camanau, (proximidades do Rio Negro) ao território dos índios Wai Wai, na fronteira guianense. Pelo menos uma delas foi massacrada por bombardeio de gás letal, com apenas um sobrevivente (Sobreviventes dessas cinco aldeias foram nossos alunos em Yawará / Sul de Roraima).
A partir do 2º semestre de 1974 as estatísticas da FUNAI começaram a referir números entre 600 e 1.000 pessoas e, em 1981, restavam apenas 354.
Em 1987 o Governo Federal passou o comando da política indigenista à responsabilidade da empresa Eletronorte que apenas mudou de estratégia, continuando o contrôle das informações e a política de isolamento dos índios como ao tempo dos militares.
Essa é uma das histórias envolvendo os povos indígenas e a Ditadura Militar no Brasil. Casos semelhantes podem ser observados com os índios Krenhakarore do Peixoto de Azevedo no Mato Grosso, os Kané (tapayuna ou Beiços-de-pau) do rio Arinos no Mato Grosso, os Suruí e os Cinta Larga de Rondônia e Mato Grosso e outros. No entanto, nenhum desses homens, mulheres e crianças é citado nas relações dos desaparecidos da Ditadura.

Casa da Cultura do Urubuí / Pres. Figueiredo / AM - 19 de fevereiro de 2011

Egydio Schwade


2000 Waimiri-Atroari desaparecidos durante Ditadura Militar – texto 2
Uma das estratégias do governo, em tempo de Ditadura Militar e de Nova República, para ocultar os assassinos dos Waimiri-Atroari é manter em locais estratégicos pessoas que saibam manter ante a opinião pública a aparência da política que está no poder. Assim Sarney deu continuidade à política indigenista da Ditadura Militar ao nomear Romero Jucá, homem de confiança dos ditadores, mas desconhecido na área indigenista, Presidente da FUNAI. Jucá, por sua vez, nomeou Sebastião Amâncio superintendente do Amazonas e Roraima, segundo cargo em importância na FUNAI. Este era conhecidamente submisso não só à política dos militares na região, mas também aos métodos de violência dos ditadores usados contra os índios Waimiri-Atroari. Quando Sarney passou a reserva desses índios à administração de uma empresa, a Eletronorte (caso único até então na política indigenista brasileira), esta nomeou Jose Porfírio de Carvalho para dar continuidade à política oficial. Sarney, Romero Jucá, Sebastião Amâncio e Carvalho, nenhum deles participou da luta pela transformação política da ditadura para a democracia em suas áreas de atuação.
Durante a maior parte do período da Ditadura Militar, Jose Porfírio de Carvalho ocupou cargos de confiança. Foi subchefe da Coordenação da Amazônia - COAMA, órgão da FUNAI e também superintendente no Acre e delegado regional no Maranhão. E "honrou” os encargos como repressor do indigenismo independente, em especial no Acre, onde reprimiu membros da OPAN - Operação Amazônia Nativa e do CIMI - Conselho Indigenista Missionário, retirando-os à força da aldeia Santo Amaro dos índios Madiha, entre eles Rosa Monteiro, única enfermeira que trabalhava junto a esse povo.
Como subcoordenador da COAMA, órgão da FUNAI durante os anos 70, Carvalho se integrou, no seu estilo, à política dos militares junto aos Waimiri-Atroari. Os militares sempre impediram o acesso de pesquisadores e jornalistas a esses índios para manter o controle absoluto sobre a informação e impedir qualquer crítica aos seus atos. Carvalho colaborou com os militares na época e deu continuidade a esse esquema repressivo e de controle da informação sobre os acontecimentos na região, tanto durante a Ditadura Militar como na nova República, agora como funcionário da Eletronorte, à frente do Programa Waimiri-Atroari. Em seu livro, "Waimiri-Atroari: a história que ainda não foi contada”, escrito quando a Ditadura já estava agonizando, revela documento que comprova o uso de armas de fogo pelo Exército contra os Waimiri-Atroari, mas a opinião pública na época dos acontecimentos não registrou crítica alguma sua contra esse uso da força. Ao contrário, revela em seu livro que após uma reunião entre o delegado regional, "Sr. Francisco Mont’alverne Pires e o chefe da Divisão da Amazônia, Major Saul Carvalho Lopes, quando a sorte dos índios Waimiri-Atroari foi traçada” que "os representantes da FUNAI, que ao assumirem cargos em Manaus passaram a submeter-se às ordens do Exército, através do 2º. Grupamento de Engenharia e Construção – apenas ouviram e anotaram o que o Alto Comando daquela corporação já decidira. Ou seja, que se daria continuidade, a qualquer preço, aos trabalhos de construção da estrada, que haviam sido rapidamente interrompidos após o ataque dos índios ao Posto indígena Alalaú.”
”Entre outras medidas administrativas que foram decididas naquele momento, – continua Carvalho – ficou acertado que, além das medidas de defesa que o pessoal que trabalhava na estrada já havia adotado, seria realizada pelo Exército, dentro da reserva dos Waimiri-Atroari, demonstração de forças bélicas, por meio de rajadas de metralhadoras, explosão de dinamite e de granadas, numa tentativa de amedrontar os índios e evitar que voltassem a interromper o andamento dos trabalhos da estrada.”
Em anexo ao seu livro, Carvalho, publica em primeira mão o texto do ofício Nr. 042/E-2 confidencial, com 13 determinações (no livro Carvalho as trata apenas como recomendações) repressivas a serem usadas pelo Exército contra os índios. Leia uma delas:
"- esse comando, caso haja visitas dos índios, realize pequenas demonstrações de força, mostrando aos mesmos os efeitos de uma rajada de metralhadora, de granadas defensivas e da destruição pelo uso de dinamite”.
O Ofício 042/74 foi apenas a oficialização do que já era prática desde o início da construção da rodovia. "Pois muito antes da realização da reunião entre o 2º GEC e a FUNAI, no KM 220 da rodovia Manaus-Caracaraí-Boa Vista -prossegue Carvalho- já o sr. Comandante nos fez ciente de que mandara para as frentes de trabalho da estrada brigadas de soldados do Exército armados, prontos para defenderem a qualquer custo, a continuidade dos serviços de desmatamento e terraplenagem da estrada’”. "A independência com que agíamos com relação às nossas decisões foi substituída pela política de que tudo deveria ser levado ao conhecimento do 2º Grupamento de Engenharia e Construção, para estudo e aprovação. A modificação foi tal e a dependência junto ao Exército chegou a tal nível, que foi firmado um acordo que os funcionários da FUNAI, que prestassem serviços na Frente de Atração Waimiri-Atroari, receberiam uma complementação salarial do próprio 2º GEC”. (Seria um suborno para silenciá-los?) "Até as normas que são exigidas normalmente para qualquer penetração em área indígena, como exame médico, vacina etc. se tornaram coisa secundária diante da ordem do Exército”. "Houve praticamente uma intervenção do 2º GEC na direção da FUNAI, em Manaus, principalmente nos trabalhos realizados pela Frente de Atração Waimiri-Atroari”.
Ninguém pode supor ingenuamente que o subcoordenador da COAMA, importante órgão da FUNAI e que estava presente na área, inclusive ajudou a recolher os corpos de companheiros mortos pelos índios, não tenha tido conhecimento do conteúdo dessas determinações. Com certeza Carvalho não precisou procurá-la nos arquivos secretos do Exército ou da FUNAI. Por que a escondeu da imprensa naquela época e só as começou a revelar quando a Ditadura agonizava e quando um novo momento político se anunciava por toda a nação e quando já era tarde para tomar qualquer providencia de proteção aos índios contra a "declaração de guerra”, da FUNAI e do Exército. A tardia posição crítica de Carvalho soa apenas como satisfação aos seus novos superiores e como justificativa do seu "inoportuno” silencio frente à sociedade. Na época a opinião pública não registrou nenhum repúdio de Carvalho à atitude dos militares e do Delegado da FUNAI, ao contrário, silenciou e em seu livro omite o posicionamento de seu amigo pessoal, Sebastião Amâncio, nomeado para substituir Gilberto Pinto, morto pelos índios o qual em entrevista de 5 de janeiro de 1975 ao jornal o Globo, assumiu que como novo coordenador dos trabalhos da FUNAI da Frente de Atração Waimiri-Atroari, aplicaria a política repressiva determinada em reunião FUNAI-Exército, realizada no dia 20 de novembro de 1974 no Km 220 da BR-174. Afirma Amâncio naquela entrevista, um mês e meio após a reunião que produziu o Ofício 042/E-2, revelado em mão por Carvalho: "Os Waimiri-Atroari precisam de uma lição: aprender que fizeram uma coisa errada. Vou usar mão de ferro contra eles. Os chefes serão punidos e, se possível, deportados para bem longe de suas terras e gente. Assim, aprenderão que não é certo massacrar civilizados (...) Irei com uma patrulha do Exército até uma aldeia dos índios e lá, em frente a todos, darei uma bela demonstração de nosso poderio. Despejaremos rajadas de metralhadoras nas árvores, explodiremos granadas e faremos muito barulho, sem ferir ninguém, até que os Waimiri-Atroari se convençam de que nós temos mais força do que eles”.
Em sua entrevista ao jornal "O Globo”, Amâncio declarou ainda que iria "deter alguns índios (Waimiri-Atroari) e mantê-los numa "fortaleza”, "numa espécie de prisão”, não só como punição mas também para fazer-lhes pregações que os levem a ter medo dos brancos”. Amâncio disse ainda que ele e outros agentes estavam cansados da "guerra sem armas” da FUNAI. E que a tradicional estratégia de pacificação do órgão havia fracassado. Chegara a hora de usar meios mais diretos, tais como dinamite, granadas, gás lacrimogêneo e rajadas de metralhadora para dar aos índios "uma demonstração de força de nossa civilização”.
Deixar mais presentes para os Waimiri-Atroari, segundo Amâncio, apenas daria a idéia de que eles estavam sendo recompensados pelos ataques e massacres dos últimos anos. Amâncio planejava construir uma fortaleza no Posto Indígena Abonari. Essa fortaleza teria uma só entrada, com uma escada que seria erguida em caso de ataque. A fortaleza abrigaria um arsenal de dinamite, foguetes, bombas de gás lacrimogêneo e granadas. Essa demonstração de força, dizia ele, expulsaria os índios de seus esconderijos e abriria caminho para a construção da estrada. Amâncio vinha do Rio Javari, com experiência no uso desse tipo de estratégia, pois ali construiu fortaleza semelhante para se proteger dos índios. Em seu livro Carvalho omite conscientemente esse fato.
O plano de Amâncio chocou a opinião pública e muitos apelaram ao presidente da FUNAI para que abrisse o jogo sobre qual seria a política oficial na estrada Manaus-Boa Vista. O general Ismarth, presidente da FUNAI, e o seu ponta-de-lança no Amazonas, delegado regional Francisco Mont’Alverne, aparentavam surpresa ante as declarações de Amâncio, mesmo tendo o delegado regional participado da reunião que concluiu com o Of. 042/74.
Por pressão da opinião pública Amâncio foi afastado do cargo pela Ditadura Militar, mas não da FUNAI. Na Nova República, durante o Governo Sarney, passou a ocupar o segundo posto mais importante, ou seja, de Superintendente da FUNAI no Amazonas, onde, em pleno novo regime, se distinguiu pela aplicação dos métodos repressivos dos militares ao indigenismo independente e à presença de jornalistas na área.
O plano do seu substituto na Frente de Atração Waimiri-Atroari, Apoena Meirelles, não divergia muito de seu antecessor. Meirelles organizou uma expedição de 80 membros para contatar os índios. Cinqüenta homens serviram como guardas. Os outros 30, chefiados por ele, colocavam presentes em frente às aldeias Waimiri-Atroari, tentando assim reconquistar a confiança dos índios. A construção da estrada, no entanto, continuou. Mas Apoena foi mais sincero para com a opinião pública. Sem revelar fatos, admitiu que foi usada a violência contra os Waimiri-Atroari."Em todos os conflitos houve baixas de ambos os lados”, - afirmou. "Em Brasília (...) todos pediam que eu tivesse cuidado com os traiçoeiros Waimiri-Atroari. Mas a estória é outra, echegamos mesmo a mentir à opinião pública nacional, não contando a verdade dos fatos que levam esses índios a trucidar as expedições pacificadoras. (....) é a estrada que corta a sua reserva, proliferando o ódio e a sede de vingança contra o branco invasor, foram os assassinatos praticados pelos funcionários da FUNAI durante os dois últimos conflitos.”(...) "Os Waimiri-Atroaritombaram no silêncio da mata e foram sutilmente enterrados e esquecidos no espaço e no tempo. Hoje em dia vamos em missão de paz, de amizade com os índios, mas na verdade estamos é trabalhando como pontas de lança das grandes empresas e dos grupos econômicos que vão se instalar na área. Para o índio fica difícil acreditar em missão de paz se atrás de você vem um potencial de destruição ecológica.” – Apoena Meirelles chefe da Frente de Atração Waimiri-Atroari, ao Jornal Opinião, Rio de Janeiro, 17-01-75.
Sarney, Romero Jucá e José Porfírio de Carvalho continuam ocupando postos de chave no Governo. Sarney como Presidente do Senado, Romero Jucá como líder do Governo no Senado e Carvalho como coordenador do Programa Waimiri-Atroari. O que podemos esperar de uma investigação sobre os acontecimentos que resultaram na morte de mais de 2000 Waimiri-Atroari durante a Ditadura Militar?
Casa da Cultura do Urubuí/Pres. Figueiredo/Amazonas, 4 de setembro de 2011.

2000 Waimiri-Atroari desaparecidos durante ditadura militar – 3

Inserido por: Administrador em 17/05/2011.
Fonte da notícia: Egydio Schwade
Por que kamña matou kiña?

Em junho de 1985, sentado na calçada em frente ao prédio da FUNAI, em Brasília, em companhia de dois Waimiri-Atroari ouKiña, um deles me perguntou à queima-roupa: “O que é que civilizado joga de avião e que queima corpo da gente por dentro?”

Em aula, tão logo tiveram confiança em nós, Doroti e Eu, semelhantes perguntas se sucediam: “Por que kamña (civilizado) matou Kiña?” “O que é que kamña jogou do avião e matou Kiña?” Kamña jogou kawuni (de cima, de avião), igual a pó que queimou garganta e Kiña morreu logo”. “Apiyemeyekî?” (por quê?). Procurávamos, inicialmente, furtar-nos à curiosidade sobre essas questões, sabedores da susceptibilidade dos agentes da FUNAI e das Forças Armadas, únicos responsáveis pelo destino deste povo.

Um texto de Damxiri dizia: “Apapeme yinpa Wanakta yimata” (“Meu pai me abandonou no caminho da aldeia de Wanakta”). A frase, discutida em aula, nos levou à seguinte história: um dia a aldeia de Yanumá, pai de Damxiri, nosso aluno da escola Yawara, foi atacada por kamña (civilizado). Yanumá procurou reter o ataque, enquanto mulheres e crianças fugiam pelo varadouro que conduzia à aldeia de Wanakta, localizada no Alto Rio Camanaú. Mortalmente ferido, Yanumá ainda conseguiu alcançar a mulher e os filhos. Sentindo-se desfalecer, recomendou à mulher que se refugiassem na aldeia de Wanakta, um líder descrito por eles como: “Wanakta karanî, xuiyá, todapra” (“Wanakta, um homem bom, bonito e gordo”). Sua aldeia estava situada numa região bem fora do roteiro da estrada e dos rios navegáveis. Possivelmente nunca foi vista pelos militares, tendo sido uma das únicas que não foi atingida pela violência praticada pelos militares.

As 31 (trinta e uma) pessoas que compunham a comunidade Yawara, onde desenvolvemos o nosso trabalho, eram sobreviventes de quatro aldeias localizadas à margem direita do rio Alalaú, desaparecidas entre 1970 e 1975. A pessoa mais velha tinha em torno de 40 anos. As demais, acima de dez anos, eram órfãs, com exceção de duas irmãs cuja mãe ainda vivia. Seus pais morreram na resistência contra a rodovia BR-174. As crianças de 4 a 10 anos também eram órfãs. Seus pais morreram de sarampo em 1981, abandonados pela FUNAI à beira da BR-174, no Km 292.

Na medida em que a confiança da comunidade crescia já não éramos apenas professores, mas pessoas envolvidas com o seu desejo de viver. Questionaram a razão pela qual kamña matou os seus pais, parentes e amigos. Desenhavam cenas de violência. Avião ou helicóptero sobrevoando a aldeia, soldados atirando escondidos atrás de árvores e na única frase ao lado, muitas vezes se destacava essa pergunta: “apiyemeyekî?” (por quê?).

Algumas vezes relacionaram os mortos. Panaxi, um jovem pai, descreveu o seguinte episódio que vivenciou no início dos anos 70 com seus pais, irmãos, parentes e amigos numa aldeia na proximidade do baixo Alalaú: “Antigamente não tinha doença.Kiña estava com saúde. Olha civilizado aí! Olha civilizado ali! Lá! Acolá! Civilizado escondido atrás do toco-de-pau! Civilizado matou Maxi. Civilizado matou Sere. Civilizado matou Podanî. Civilizado matou Mani. Civilizado matou Akamamî. Civilizado matou Priwixi. Civilizado matou Txire. Civilizado matou Tarpiya. Com bomba. Escondido atrás do toco-de-pau!”

Yaba escreveu: “Kamña mudîtaka notpa, apapa damemohpa” (civilizado desceu de helicóptero na minha casa, aí meu pai morreu). “Ayakînî damemohpa. Apiyemyekî?” (Minha irmã morreu. Por quê?).

Abaixo, outra relação de mortos: na Mahña mudî, (aldeia do rio Mahña, Alto Alalaú) Mawé, Xiwya, mãe de Rosa, Mayede, marido de Wada, Eriwixi, Waiba, Samyamî, mãe de Xere e Pikibda. Morreu ainda pequena (pitxenme), filha de Wada. Maderê, mulher de Elsa. Wairá, mulher de Amiko que mora no Jara, Pautxi, marido de Woxkî que mora no Jará. Arpaxi, marido de Sidé que mora no Alalaú, Wepînî, filho de Elsa. Kixii e seu marido Mayká, Paruwá, pai de Ida. Waheri, irmã de Wome e mais outra irmã de Wome. Suá, pai de Warkaxi e suas duas esposas e um filho. Kwida. Wara’ye – pai de Comprido. Tarahña, pai de Paulinho. Ida, mãe de Mayedê. Morreu ainda uma mulher velha cujo nome não relacionaram. A filha de Sabe que mora no Mrebsna Mudî, dois tios de Mário Paruwé, o pai de Womé e uma filha de Antônio.

Kramna Mudî era uma aldeia Kiña que se localizava na margem Oeste da BR-174, no Baixo rio Alalaú, próximo ao local conhecido como Travessia sobre a Umá, um “varadouro interétnico” que atravessava o território Waimiri-Atroari de Sul a Norte, para interligar com os Wai Wai e outros povos Karib na Guiana e no Suriname. No final de setembro de 1974, Kramna Mudî acolhia o povo Kiña para uma festa tradicional. Visitantes do Camanaú e do Baixo Alalaú já estavam lá. O pessoal das aldeias do Norte ainda estava a caminho. A festa já estava começando com muita gente reunida. Pelo meio dia um ronco de avião se aproxima. O pessoal sai das malocas para ver. A criançada se concentra no pátio. O avião derramou um pó e todos morreram, menos um. O tuxaua Comprido estava a caminho. Vinha do Norte com a sua gente. Chegando perto estranharam o silêncio. Aldeia em festa sempre está cheia de algazarra. Ao se aproximarem encontraram todos mortos, menos um. Morreram sem um sinal de violência no corpo. Dentro da maloca, nos girais, grande quantidade de carne moqueada, mostrando que tudo estava preparado para acolher muita gente. O sobrevivente só se recordava do barulho do avião passando por cima da aldeia e do pó que caia. Os Kiña forneceram uma relação de 33 parentes mortos neste massacre.

Contaram-nos que Comprido, ao ver os parentes mortos pelo chão, revoltou-se muito. Antes de voltarem para as suas malocas, provavelmente no dia 30 de setembro de 1974 à tarde, um grupo de Kiña atacou três funcionários da FUNAI, João Dionísio do Norte, Paulo Ramos e Luiz Pereira Braga, que subiam o Rio Alalaú para abastecerem o Posto Alalaú II. Mataram os três e jogaram os corpos na altura da Travessia, local onde a Umá (varadouro) atravessa o Alalaú, a aproximadamente seis quilômetros da aldeia chacinada. No dia seguinte, o tuxaua Comprido atacou o Posto Alalaú II, a aproximadamente 500 m da ponte do Rio Alalaú, então, o ponto mais avançado da BR-174.

Casa da Cultura do Urubuí / Presidente Figueiredo / 14 de maio de 2011.
Egydio Schwade

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