quarta-feira, 27 de julho de 2011

As Dívidas e a Dúvida para a Agricultura Familiar

Por Gerson Teixeira
26 de julho de 2011

As entidades representativas dos trabalhadores rurais negociam com o governo, medidas para aliviar o quadro atual de endividamento, no crédito rural, dos assentados e agricultores familiares.

Essas negociações dos trabalhadores se repetem desde 2003, quando as dívidas desses segmentos passaram a ser contempladas nos freqüentes instrumentos oficiais de repactuação, inaugurados e tornados corriqueiros pelas pressões dos ruralistas, a partir de meados da década de 1990.
Fixando-nos no caso específico da agricultura familiar, parece essencial indagar: por que se mantém o problema da elevada inadimplência desses agricultores?

Antes de opinarmos a respeito, vale um resumo desses números. De acordo com o Ministério da Fazenda, o estoque atual das dívidas rurais é de cerca de R$ 149,2 bilhões. Desse valor, estão contabilizados ‘em atraso’ ou já ‘em prejuízo’, em torno de R$ 44 bilhões, o que equivale a 36% do PIB específico da agricultura (base primária; posição de 2010), calculado pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Agrícola da ESALQ.

As dívidas dos agricultores familiares somam R$ 29 bilhões, o que corresponde a 19,5% do valor total antes registrado. Os valores em atraso e os já lançados em prejuízo nos contratos com esses agricultores alcançam R$ 6,1 bilhões, o que resulta em uma taxa média de inadimplência, para a agricultura familiar, de 21%. No Nordeste essa taxa está próxima a 30%.

Origem
A origem da crise severa do endividamento agrícola que veio à tona nos primeiros anos da década de 1990 esteve associada ao gap crescente entre a evolução dos custos financeiros dos contratos de crédito, e as receitas da atividade; estas, progressivamente erodidas pelos preços depressivos dos produtos agrícolas.

Esse quadro foi mais uma herança do neoliberalismo e da crise da dívida pública e seus desdobramentos na estagflação da economia brasileira na década de 1980, e dos diversos planos fracassados de estabilização da moeda, até a primeira metade da década de 1990.

Na atualidade, diversamente daquele momento, as causas da inadimplência para os agricultores familiares não estão associadas aos custos excessivos dos financiamentos.

Como decorrência das pressões e negociações desenvolvidas pelos mesmos movimentos sociais, o crédito rural ofertado a esse segmento, desde alguns anos, apresenta custos (taxas e juros) baixos, se comparados aos valores de mercado e, mesmo, aos demais segmentos agrícolas.

Tais causas resultam, basicamente, dos efeitos do grau extremado de subordinação da base primária da agricultura aos cada vez mais concentrados segmentos que controlam a indústria intermediária da agricultura e a comercialização dos produtos agrícolas. Em outros termos, as dificuldades de solvência dos agricultores familiares decorrem, preponderantemente, do incremento continuado e excessivo dos custos de produção.
Esse processo não tem sido contrarrestado pelos preços, mesmo sob tendências altistas para vários produtos nos últimos anos, cujos ganhos somente em parte são repassados aos agricultores familiares, vez que em boa parte apropriados pelas corporações que controlam a comercialização.
Os dados dos termos de troca intra-setoriais confirmam essa hipótese. O quadro abaixo, para alguns produtos no estado de São Paulo, mostra a deterioração dos termos de troca, ao se comparar as posições de 1999 e de 2009.



O exposto acima mostra que a substantiva transferência de renda direta dos agricultores foi deslocada, das instituições financeiras, para os capitais comerciais e industriais vinculados ao setor. O que não significa que os bancos tenham tido perdas nesse setor. O Tesouro passou a compensar a alocação de recursos a baixo custo, para o Crédito Rural, mediante repasse de verbas para a equalização das operações com recursos controlados (aplicados a taxas subsidiadas).

É importante que as entidades tenham presente essa distinção temporal entre os fatores determinantes da incapacidade de pagamento dos agricultores familiares, não apenas para possibilitar demandas por medidas do governo, tecnicamente adequadas, como também, para que reflitam sobre os rumos que devem orientar as opções políticas para o futuro da atividade primária da agricultura familiar.

Exploremos rapidamente o assunto. Primeiro, devemos admitir o componente estrutural da concentração econômica a montante e a jusante da atividade primária da agricultura, cuja tendência é de intensificação.

Depois, não se pode negar que o Pronaf incluiu os agricultores familiares na política de crédito rural. Contudo, é importante atentar para o fato de que tal inclusão se deu via a disseminação do pacote tecnológico do agronegócio, o que pôs em curso, a modernização conservadora da agricultura familiar. O Programa Mais Alimentos (cujo principal indicador de desempenho não é o aumento da produção de alimentos, mas o de máquinas agrícolas), foi o passo final da estratégia.

Nesse contexto, os agricultores familiares passaram a demandar massivamente máquinas e insumos agroquímicos, assim contribuindo para as pressões de alta desses produtos. E quanto mais recursos aplicados pelo Pronaf sob esse formato, mais insumos químicos, mais custos e maiores problemas de capacidade de pagamento para a agricultura familiar.

Restam, então, duas opções para os agricultores familiares: 1) assumir de vez o modelo agrícola produtivista e, nas negociações das dívidas, atuar de forma tecnicamente correta reivindicando subsídios para a compra de insumos, e correções e maior amplitude para os instrumentos de preços já disponíveis; ou 2) começar a escapar desse sufoco dando materialidade aos discursos por um novo modelo agrícola, exigindo do governo estratégia e políticas efetivas para um processo bem planejado de transição agroecológica.

Enfim, que essa encalacrada das dívidas seja útil para que sejam tiradas as dúvidas sobre os melhores rumos para a agricultura familiar, e para a soberania e a segurança alimentar da população brasileira.

Gerson Teixeira: Ex-Presidente da ABRA (Associação Brasileira de Reforma Agrária)



“Plano Safra não enfrenta o problema das dívidas da agricultura familiar”



Por Luiz Felipe Albuquerque
Da Página do MST
15 de julho de 2011


O Plano Safra 2011-2012 para a agricultura familiar foi lançado em Francisco Beltrão (PR), com a presença da presidente Dilma Rousseff, na terça-feira (12).
Apesar dos elogios de Dilma aos pequenos agricultores, o plano não atende as necessidades do setor, especialmente porque não enfrenta o problema do endividamento.

A agricultura familiar ficou com R$ 16 bilhões para a safra 2011/2012, enquanto o agronegócio terá R$ 107,2 bilhões para financiamento de custeio e investimentos.

Adelar Pretto, da Coordenação Nacional do MST, avalia que o plano não resolve o problema do endividamento dos pequenos produtores, que barra o acesso a novos créditos.
Na última safra, a demanda de crédito pela agricultura familiar foi menor que o orçamento do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar).

“Se o governo não resolver o problema do endividamento, a aplicação dos recursos será bem menor. Se o governo não tomar decisão política – e esperamos que isso aconteça - os pequenos agricultores não terão financiamento”, afirma Pretto.

Um documento restrito do governo aponta que o endividamento do Pronaf é de 19%, prejudicando especialmente as famílias assentadas em projetos de Reforma Agrária. “O Pronaf não é uma linha de crédito para a Reforma Agrária”, afirma Pretto. Ele cobra a criação de uma linha de crédito especial para os assentados.

Os movimentos da Via Campesina fizeram uma jornada de lutas para cobrar do governo a renegociação das dívidas. A partir dessas lutas, os movimentos apresentaram uma proposta e foi aberto um processo de negociação.

Abaixo, leia a entrevista da Página do MST com Adelar Pretto, que atua no Rio Grande do Sul.

Qual a sua avaliação sobre o Plano Safra 2011/2012 para a agricultura familiar?

O plano é rebaixado em termos de valor, porque é a mesma quantia do ano passado. Dos R$ 16 bilhões, foram utilizados R$ 9,5 bilhões. Ou seja, sobrou dinheiro. O grande motivo disso foi o endividamento. Se o governo não resolver o problema do endividamento, a aplicação dos recursos será bem menor. Se o governo não tomar decisão política – e esperamos que isso aconteça - os pequenos agricultores não terão financiamento.

Qual a razão do endividamento dos pequenos agricultores?

O Pronaf tem muitos limites. Um exemplo disso é a própria questão dos endividamentos. Se fosse um programa com sustentabilidade não teria o grau de endividamento que se criou em torno dos pequenos agricultores. Oficialmente, fala-se que não há endividamento. Mas tivemos acesso a um documento que o indica que o endividamento do Pronaf é de 19%. O maior número de inadimplência é em Pernambuco, onde 65% dos que pegaram empréstimos estão endividados. No Rio Grande do Sul são 12% de inadimplência. O diferencial é que em Pernambuco o valor da dívida não chega a R$ 1 bilhão. No Rio Grande do Sul, é de R$ 13 bilhões. Essa é a situação da agricultura: os inadimplentes não conseguem acessar mais crédito nem para custeio nem para investimento.

Por que o governo não reconhece as dívidas?

Se o banco passar de 5% de inadimplência, não consegue mais operar recursos por causa de um mecanismo interno. Com isso, o banco esconde o alto grau de endividamento. Isso faz com que o governo não reconheça a existência de uma grande inadimplência. Há uma articulação junto com o Ministério da Fazenda, o Ministério do Desenvolvimento Agrária (MDA) e o Banco do Brasil. Eles fazem toda uma artimanha, faz um contrato de venda da dívida para uma empresa privada – não chegam a vender, até porque ninguém vai comprar algo “podre” – e se a empresa receber do devedor, parte vai para ela e parte para o banco. Essas dívidas são trabalhadas como prejuízo, sendo que esse montante de dívidas chega a quase 30%. Mas aparecem no banco como prejuízo, e não como inadimplência do banco, porque foi vendida para a empresa. Ou seja, eles fazem umas artimanhas para dizer que não há inadimplência. Só que no dia-a-dia o agricultor vai até o banco, vive a inadimplência e não consegue acessar recursos . É por isso que o Plano Safra não irá resolver nada e ninguém será beneficiado.

Por que parte dos assentados não consegue pagar a dívida que contraíram com empréstimos?

Por exemplo: você pega 20 mil para investir no leite. Com esse dinheiro você compra vaca, ordenhadeira, constrói o estábulo etc. No máximo, tem três anos de carência, tendo que pagar em cinco. Aí o agricultor tem duas opções: ou se esforça e procura uma outra fonte de renda - para se manter e pagar as dívidas - ou decide entre comer ou pagar as dívidas - se a fonte dele for só essa. O normal é optar em viver uma vida pelo menos razoável. O tempo para pagar o empréstimo é curto, insuficiente. Não consegue produzir para pagar nesse pequeno período e tem de ter um subsídio maior. É isso que sempre questionamos do governo. A política do governo é para uma escalada de desenvolvimento de um empresário rural. O agricultor será excluído e vai para o Bolsa Família. Eles não admitem a negociação das dívidas porque seria admitir a falência do Pronaf.

Como está o processo de renegociação das dívidas?

Fizemos uma série de mobilizações. Nessa última que ocorreu no final de junho, conseguimos que o governo constituísse um grupo de trabalho. A primeira reunião será no dia 20 de julho. Acertamos que se constituísse esse grupo para parar as mobilizações e que não se cobrasse as dívidas por 90 dias. O governo aceitou por 60 dias. Assim, as dívidas de investimentos estão suspensas por 60 dias. As dívidas de custeio têm que ser pagas, mas as de investimentos terão esse prazo e não ficamos inadimplentes.

Nossa expectativa é de conseguir resolver isso nesse prazo. Se não faremos novas mobilizações. Não podemos nos conformar com o fato de 80% da agricultura familiar estar inadimplente e ficar por isso mesmo porque o governo não querer negociar. Quem está coordenando os processos é o Gilberto Carvalho [ministro da Secretaria Geral da Presidência], porque o MDA e o Ministério da Fazenda estão contra a renegociação das dívidas.

Qual a proposta dos movimentos sociais para resolver esse problema da agricultura familiar?

A proposta construída pelo conjunto dos movimentos do campo é que o governo junte todos os contratos em um único. A partir daí o agricultor dá um rebate de um determinado valor e o resto será pago nos próximos quinze anos, com dois ou três anos de carência. Seu eu pagar a proposta em dia, teria um bônus de 30% na parcela.

Essa é a proposta que o conjunto dos movimentos apresentaram e o governo até então não estava admitindo que tinha endividamento. A partir das mobilizações, o governo acabou admitindo que realmente havia um problema e que tínhamos que conversar. Agora vamos ouvir do governo sua contra proposta e dialogaremos a partir daí.

Como ficam os assentados da Reforma Agrária? 

O Pronaf não é uma linha de crédito para a Reforma Agrária. Não se pode fazer com que os diferentes sejam iguais. O pequeno agricultor que já está na terceira ou quarta geração familiar é muito mais estruturado. É diferente do agricultor que sai de um acampamento com a família com a disposição de trabalhar e chega em um lote tendo que entrar na lógica do Pronaf. Se mal serve para o pequeno agricultor, imagine para os assentados. Tem que ter uma linha de crédito diferenciado para a Reforma Agrária. 

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