quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

A China é uma grande prisão

Autor(es): HUMBERTO MAIA JUNIOR
Época - 30/01/2012
 
O jornalista chinês perseguido pelo governo conta sua experiência na prisão e diz que a abertura econômica não trouxe liberdade de expressão


O jornalista Liao Yiwu, de 53 anos, gosta de pensar que está seguindo os passos de seu pai, um professor de literatura chinesa preso pelo governo comunista durante a Revolução Cultural, na década de 1960. "Ele foi punido por se dedicar a seu trabalho", diz. Como seu pai, Liao foi para a prisão, em 1990. O crime do filho foi escrever um poema contra o governo chinês inspirado nos protestos na Praça da Paz Celestial. "Fui preso porque todos gostam de ler meus textos." No ano passado, Liao fugiu para a Alemanha e conseguiu publicar Deus é vermelho – A história secreta de como o cristianismo sobreviveu e floresceu na China comunista, recém-lançado no Brasil pela editora Mundo Cristão.
ÉPOCA – Quando o senhor decidiu escrever o livro?
Liao Yiwu –
 Foi depois que conheci um médico cristão. Quando o encontrei, ele fazia uma cirurgia de catarata num paciente num lugar de condições precárias numa região montanhosa da China. Depois da cirurgia, conversamos. Ele me contou que tinha sido vice-diretor de um hospital de Suzhou, mas foi afastado do cargo porque o Partido Comunista exigiu que abandonasse o cristia-nismo e ele recusou. A história dele me impressionou e resolvi escrever sobre essa perseguição.
ÉPOCA – Que tipo de perseguições os cristãos sofreram?
Liao - 
A China é um país ateu que despreza as crenças religiosas. O governo se opõe a todas as religiões, como budismo, taoismo ou cristianismo. Naquele momento (no início da Revolução Cultural, nos anos 1960), havia muitos missionários cristãos estran-geiros na China. Todos foram expulsos. Os fiéis foram proibidos de manter relações com os cristãos estrangeiros. O governo aceitava apenas a fé no comunismo. Por isso, muitos fiéis se afastaram. Mas muitos também continuaram com sua fé e lutaram contra o regime. Alguns foram fuzilados, outros passaram mais de 20 anos na prisão.

ÉPOCA – Hoje existe tolerância religiosa na China?
Liao –
 As estatísticas mostram que há pouco mais de 70 milhões de cristãos, 5% da população. De um modo geral, a procura por uma religião reflete a busca de suporte espiritual. E a China vive um momento de dúvidas e inseguranças. O cristianismo, uma religião tradicional, ajuda a suprir essa necessidade. Mas acredito que a China tolera o cristianismo na teoria, não na prática. Deus e o diabo não podem existir no mesmo lugar.
ÉPOCA – O senhor passou quatro anos encarcerado por ter escrito um poema (“Massacre”) inspirado nos protestos na Praça da Paz Celestial, em 1989. Como foram os
anos na prisão?
Liao – 
Fui humilhado, tratado como um cachorro. Depois da prisão, me tornei outra pessoa. Presenciei muitos assassinatos na cadeia e acabei me tornando um confidente dos presos, que me contavam suas histórias. Um deles me contou em deta-lhes como matou a mulher: cortou a carne e comeu os pedaços dia após dia, até acabar. Outro me contou como escapou de uma prisão por uma fossa cheia de fezes. Não queria ouvir essas histórias, mas eles me diziam que no dia seguinte poderi-am ser fuzilados. “Você é meu último ouvinte”, diziam. Isso ficou marcado na minha mente e só consegui me libertar de-pois de escrever essas histórias em livro (The corpse walking, algo como O cadáver andarilho, inédito no Brasil).
ÉPOCA – Como o senhor conseguiu sair da China?
Liao –
 Escapei pela fronteira na região de Yunnan no dia 2 de julho de 2011. Entrei no Vietnã, de lá fui até a Polônia e depois cheguei à Alemanha. Já conhecia todos os cantos de Yunnan porque passei cinco anos lá pesquisando para o livro sobre o cristianismo. Na fronteira, havia muitos clandestinos, o povo era livre. Desliguei o celular, parei de acessar a internet e entrei clandestinamente no Vietnã.
ÉPOCA – Por que não saiu antes?
Liao –
 Sofria ameaças e pressões, mas conseguia ficar na China. Eu me considero escritor, não político. Escrevia meus livros no país e os publicava no exterior. Mas, dessa vez, eles me ameaçaram com prisão. Achei melhor sair.

ÉPOCA – O que o senhor sentiu ao chegar à Alemanha?
Liao –
 Liberdade. Antes, eu não era livre.
ÉPOCA – Alguma diferença cultural surpreendeu o senhor?
Liao –
 Viajei pelo mundo e percebi que os chineses mentem demais. A China está repleta de mentirosos. Outra coisa que chamou a atenção foi durante minha chegada aos Estados Unidos. O controle na alfândega é muito rigoroso. Fiquei três horas lá. Senti que não deve ser fácil para o governo americano administrar um país tão livre. Depois, fui para a Times Square, em Nova York. Nunca tinha visto tantos prédios altos e tantas pessoas andando na rua durante a noite. Mas me surpreendi quando vi um painel de propaganda da Xinhua, agência de comunicação chinesa, no topo de um prédio. Como uma propaganda dessa agência da ditadura pode estar num país liberal como os EUA?
ÉPOCA – O senhor pensa em voltar?
Liao –
 Para mim, a China é uma grande prisão. Mas continuo esperando a chegada da mudança.

ÉPOCA – Como seus amigos e parentes lidam com a possibilidade de seu trabalho incomodar o governo chinês?
Liao –
 Não os envolvo em meu trabalho. Mas sofro por eles. Divorciei-me duas vezes. A primeira, depois de sair da prisão. Minha mulher não suportava a pressão e pediu a separação. Com minha segunda mulher, ficamos casados por dez anos. Uma vez, ela me perguntou se tínhamos futuro. Não consegui responder, e, por isso, nos divorciamos.
ÉPOCA – Escritores chineses sofrem muita pressão do governo?
Liao –
 Como a maioria dos escritores produz histórias imaginárias, não são perseguidos. Eles escrevem apenas para ganhar dinheiro. Entregam a consciência para o diabo. Alguns foram muito bem-sucedidos e têm uma vida confortável. O mesmo ocorreu com diretores de cinema como Zhang Yimou. Nos filmes, eles embelezam a ditadura e fazem sucesso no mundo. Na Olimpíada de Pequim, convidaram um músico para compor uma canção. Só tem um verso: “Eu te amo e você me ama”. E só. Esse músico é famoso, conhecido pelo mundo inteiro. Quer dizer, todos só precisam cantar “Você me ama e eu te amo”, e está tudo bem.
ÉPOCA – Que tipo de censura o senhor sofreu?
Liao –
 Manuscritos de obras minhas foram confiscados. Além disso, sofri ameaças de prisão e fiquei encarcerado por curtos períodos. Já tentei lançar livros na China, mesmo com pseudônimo, mas o governo sempre proíbe a publicação. O povo não pode ter acesso a meus livros.
ÉPOCA – Como a falta de liberdade afeta o cotidiano do povo?
Liao –
 Os chineses não têm liberdade de expressão. Não podem opinar sobre o governo. Por exemplo, se o governo confiscar sua terra, você não pode falar nada ou sofrerá retaliações. Um porco tem mais liberdade que uma pessoa. O comunismo não deixa a população raciocinar.
ÉPOCA – Como o governo trata os opositores?
Liao –
 O governo chinês não tolera qualquer forma de oposição. Do ano passado para cá, muitos amigos meus desapareceram. O governo trata os intelectuais como bandidos, cobre seu rosto com saco preto antes de torturá-los. Fui ameaçado de desaparecimento caso continuasse publicando livros no exterior. Desaparecimento é algo assustador, pois ninguém sabe para onde essa pessoa foi.
ÉPOCA – Em artigo publicado pelo senhor no jornal The New York Times em 2011, a China é chamada de “prisão colossal e invisível”. Outras pessoas preferem classificar o país como um “gigante da economia”. O que o senhor acha da variedade de adjetivos que a China recebe?
Liao –
 Nos últimos anos, o mundo mantém intensa relação comercial com a China. Mas digo que a China mantém uma política de cinismo. Não permite debates sobre suas políticas. Adota apenas relações comerciais. Digo simbolicamente que a China, numa mão, carrega notas de dinheiro. Noutra segura uma faca. O dinheiro é oferecido aos estrangeiros que querem fazer negócio, abrir fábricas poluentes que seriam proibidas em seu país de origem. A faca o governo reserva à população chinesa. Políticos, homens de negócio e intelectuais que elogiam a China veem apenas o sucesso econômico e ignoram a forma como o país trata sua população.
ÉPOCA – O senhor acredita que a China um dia possa se tornar um Estado democrático de direito?
Liao –
 É uma tendência natural. Mas até lá a natureza estará destruída e os rios poluídos. Estou preocupado com a degradação dos recursos naturais na China. É assustador. Além disso, um regime democrático pode levar à segregação do país. As províncias se tornarão países independentes. A China pode virar 20 países ou mais.
ÉPOCA – O senhor acredita que a Primavera Árabe possa influenciar movimentos pró-democracia na China?
Liao –
 Sim. O ano passado foi assustador para os comunistas chineses. No primeiro semestre, houve a Primavera Árabe. No segundo, a morte do ditador Muammar Khadafi, da Líbia. Vi muitos chineses chorando a morte dele. Isso me fez lembrar a morte de Mao Tsé-tung, em 1976. Muitos choraram sua morte, mas logo depois ocorreu uma série de mudanças positivas... Espero que essa mudança possa acontecer novamente.
ÉPOCA – O senhor vê seu trabalho como uma missão ou um fardo?
Liao –
 Apenas transcrevo a realidade que vejo. Não faço
críticas. Apenas relato fatos. A verdade é meu ideal.

Nenhum comentário:

Postar um comentário