terça-feira, 3 de agosto de 2010

China compra terras no Brasil

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O Estado de S. Paulo - 03/08/2010
O ex-ministro Antônio Delfim Netto tem razão quando recomenda cuidado com as vendas de terras a empresas da China, controladas pelo Estado ou com participação estatal. Investimentos estrangeiros são de modo geral bem-vindos e podem trazer contribuições importantes ao crescimento do País. Grupos estrangeiros podem fazer bons negócios e ao mesmo tempo fortalecer a economia brasileira com recursos adicionais e, ocasionalmente, com aporte de tecnologia. Mas os "negócios" mudam de sentido quando o investimento é subordinado a razões estratégicas de um Estado estrangeiro. No caso de recursos naturais, e de terras para a agropecuária, avaliar corretamente essa estratégia é uma questão de segurança. 
"Os chineses compraram a África e estão tentando comprar o Brasil", disse o professor Delfim Netto em entrevista ao Estado de domingo. Pode haver algum exagero de linguagem, mas a preocupação é justificável. O diretor-geral da FAO, a agência das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, alertou os governos africanos para o risco de um "neocolonialismo", desta vez baseado no controle de áreas férteis. Companhias de vários países participaram nos últimos anos de uma corrida para comprar terras na África. As chinesas estiveram entre as mais ativas.
A maior estatal chinesa do setor, a China National Agricultural Development Group Corporation, opera em 40 países e 10 mil de seus 80 mil funcionários trabalham no exterior. A empresa detém 6 mil hectares na Tanzânia e criou negócios no setor de alimentos também na Guiné, no Benin e em Zâmbia e já entrou na Argentina e no Peru. Outras companhias chinesas também têm comprado terras em vários países, com o mesmo objetivo: garantir à China produtos indispensáveis ao seu crescimento econômico e à urbanização de centenas de milhões de pessoas.


Desde a última década o governo chinês vem aumentando os investimentos em recursos naturais de outros países. Até agora, seu avanço mais impressionante ocorreu na África, onde os investimentos em mineração e depois na compra de terras foram acompanhados de projetos de cooperação com os países hospedeiros, quase sempre pobres e com baixo grau de desenvolvimento.

O passo seguinte na estratégia foi a negociação de projetos com vários governos latino-americanos. Desde o começo deste ano, foram anunciados planos de investimentos de pouco mais de US$ 11 bilhões no Brasil. Se todos forem concretizados, o estoque de capital chinês no Brasil poderá ocupar a 9.ª posição em ordem de grandeza. Por enquanto, está em 42.º lugar.

Companhias chinesas têm mostrado disposição de investir em vários setores, como produção de aço, exploração de petróleo, distribuição de eletricidade, exploração de minérios e construção do trem-bala entre Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro. Parte desses investimentos atende ao objetivo de garantir matérias-primas para uso industrial e para geração de energia.

Ao mesmo tempo, empresas têm procurado oportunidades de investimento no agronegócio. Em abril, a China National Agricultural Development Group Corporation revelou a intenção de comprar terras para produzir soja e milho. Nos primeiros contatos, negociadores da empresa indicaram interesse em terras do Centro-Oeste, especialmente de Goiás.

Na mesma época, representantes do Chongqing Grain Group anunciaram a disposição de aplicar US$ 300 milhões na compra de 100 mil hectares no oeste da Bahia, para produzir soja para os mercados brasileiro e chinês. Funcionários da empresa participaram da comitiva do presidente Hu Jintao.


Um mês depois, o Grupo Pallas International, formado por investidores privados, mas também com participação estatal, divulgou planos de comprar entre 200 mil e 250 mil hectares no oeste da Bahia e possivelmente no conjunto de áreas de cerrado do Maranhão, do Piauí e do Tocantins, conhecido por Mapito.


Negócios desse tipo envolvem o controle de grandes áreas por grupos subordinados à estratégia de uma potência estrangeira. Poderão agir segundo interesses comerciais, como outros investidores, mas poderão seguir uma lógica de Estado - e esse Estado não será o brasileiro.


''O Brasil está levando o déficit em conta corrente na flauta''

Autor(es): Raquel Landim
O Estado de S. Paulo - 01/08/2010
 
O economista critica o real forte, afirma que o Congresso teve um "ataque de loucura" para destruir as finanças do País e alerta para a compra de terras por chineses


Antônio Delfim Netto, 82 anos, é um dos economistas mais ouvidos pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele está preocupado com o déficit em conta corrente e culpa o câmbio forte. "O Brasil está levando isso na flauta", diz. Na semana passada, o Banco Central anunciou que as transações do País com o exterior ficaram negativas em US$ 23,8 bilhões no primeiro semestre - valor próximo ao registrado em todo o ano anterior.


Para o "czar" da economia na ditadura militar, época do "milagre econômico", o governo é "ineficiente, gastador, e está apropriado por uma burocracia sindical que vive nas suas tetas". Para resolver o problema, defende que as despesas de custeio da máquina pública cresçam abaixo do Produto Interno Bruto (PIB) por 10 anos.

O economista apoia o papel indutor do BNDES, mas afirma ser evidente que houve um subsídio do Tesouro nos empréstimos ao banco, que precisa ser colocado no orçamento. Delfim não acredita que todos os investimentos previstos em infraestrutura, Copa e Olimpíada vão sair do papel. "É uma conta que não cabe dentro do PIB". A seguir, trechos da entrevista ao Estado.

Quais são os principais desafios da economia no próximo governo?

O Brasil está hoje em uma situação muito melhor que no passado recente. Por que a partir de 2003 a coisa mudou? Porque o mundo entrou em expansão. O Brasil ligou seu plugue ao mundo e, de repente, um país que tinha problemas permanentes de financiamento de contas correntes se transformou em credor do FMI. A expansão brasileira não tem nada de especial. E isso medimos pela proporção da exportação em relação ao mundo, que continua perto de 1%. O Brasil nunca fez esforço exportador e continua com uma política cambial devastadora. O País sempre teve dois problemas que abortavam o crescimento: energia e déficit em contas correntes. A oferta de energia está crescendo 4,5% a 5% ao ano, suficiente para uma nação que precisa crescer entre 5% e 6% ao ano. Já o déficit em conta corrente está se restabelecendo e nós estamos levando isso na flauta. Estamos brincando, fingindo que não tem importância. Tem, sim. A história mostra que déficit em conta corrente produz surpresas. Hoje temos US$ 250 bilhões de reservas. Mas isso é muito relativo. Uma boa parte desaparece em pouco tempo se as condições se desintegram.

Por que o senhor está preocupado com o déficit em conta corrente?

Estamos fazendo um déficit gigantesco, com enormes prejuízos para a sofisticação do nosso processo industrial. Nós temos, hoje, 10 ou 15 exemplos concretos de empresas brasileiras e estrangeiras que têm indústria no Brasil e na China. Dentro da fábrica, a produtividade brasileira é igual à produtividade chinesa e a qualidade é um pouco melhor. Portanto, a competição com a China não tem nada a ver com setor privado. Tem a ver com o governo, que é ineficiente, gastador, não dá suporte adequado, não produz a infraestrutura. Nós temos um problema de burocracia gigantesco, mas ninguém vai resolver fazendo revolução. São medidas na margem, todos os dias. O Brasil está apropriado por uma burocracia sindical que vive nas tetas do governo. Esse déficit em conta corrente, seguramente, é em boa parte por causa do câmbio de R$ 1,78. Não vamos ter ilusão. Taxa de câmbio competitiva é fundamental para o crescimento econômico.

O senhor é favorável à intervenção no câmbio?

A valorização do câmbio é produzida por uma política monetária que mantém a taxa de juro real interna muito superior à externa. Os juros estão fora do lugar, o que põe o câmbio fora do lugar. O importante neste caso é que você tem de escolher. O BC tem de ser autônomo operacionalmente, mas independência é uma tolice. É bom trabalhar com o sistema de metas da inflação? É. Mas como o BC obtém credibilidade? Aumentando a taxa de juros real de equilíbrio e reduzindo o PIB potencial, para conseguir a meta de inflação. É por isso que o papel do BC é discutível. Você tem que discutir os parâmetros que ele usa.

Está na hora de o BC interromper a alta dos juros?

Está visível que a inflação era um surto. O pior é que o BC vai achar que foi ele que reduziu a inflação. Não foi. Ele levou um susto com a inflação caindo antes do que esperava e reduziu o aumento de juros. O sistema financeiro adquiriu um tal poder que quem produz parafuso não vale nada. Quem vale é quem tem um papel no computador. O grande drama é que levamos longe demais essa distorção cambial. O País não está sofrendo da doença holandesa. Hoje vendemos mais geladeira que antes, logo não há desindustrialização. Só que quando você olha para dentro da geladeira, o valor adicionado nacional era 80%, hoje é 30%.

O senhor disse que o governo é gastador. O Brasil precisa de ajuste fiscal?

Não precisa de revolução nem de choque de gestão. Tudo isso é conversa mole para boi dormir. O governo precisa de um programa de 10 anos em que as despesas de custeio e transferência cresçam menos que o PIB, conduzindo a diferença para o investimento. O Estado está apropriado pelo funcionalismo. A Previdência é um problema que vai ter de ser enfrentado, não só pelo aspecto financeiro mas também pela justiça. Você extrai do trabalhador para entregar ao funcionário. Basta ver o ataque ao Tesouro feito nas últimas semanas. Deu um ataque de loucura no Congresso e houve um conluio entre o Legislativo e o Judiciário para destruir as finanças do País. E isso tudo feito com alegria, samba, foguete dentro de um Congresso absolutamente irresponsável.

Um dos pontos de restrição ao crescimento é a baixa taxa de poupança. Como resolver isso?

Um dos parâmetros usados é que você precisa de 25% de investimento para produzir 5% a 6% de crescimento. Primeiro, esse parâmetro não é estável. Segundo, depende da qualidade dos investimentos. A poupança vem depois do investimento. No caso brasileiro, isso é visível. É claro que no curto prazo tem uma pressão inflacionária. É isso mesmo. Para isso temos controles. Mas também é claro que isso é um fator preocupante. Quanto maior for a taxa de poupança, melhor. Quem destruiu isso foi o setor público. Hoje a carga tributária é 35% e o governo investe 1%. O setor privado poupa: representa pouco mais de 60% do PIB e poupa 15%. Quem não poupa é o governo.

Como o senhor avalia a atuação do BNDES no governo Lula?

Passamos por momento de dificuldade e o BNDES agiu corretamente. Podemos discutir um ou outro investimento do banco, que não faz sentido, mas é uma questão menor. Vamos supor que o BNDES não tivesse agido: o PIB cairia 3% e a arrecadação também. O BNDES é um mecanismo de financiamento importante, mas o Brasil precisa de outros. Imaginar que o BNDES pode escolher os melhores investimentos sem nenhum viés é um equívoco. Agora, negar o papel do banco é ridículo. A única coisa justa é: houve sim um subsídio, que tem de ser apurado e colocado no orçamento. Evidentemente o Tesouro não deve continuar fazendo aportes do BNDES. Isso foi um incidente.

Sem reforço do Tesouro no caixa do BNDES, como o Brasil vai financiar a usina de Belo Monte, as obras do PAC, os estádios da Copa do Mundo?

Você tem aí uma soma de investimentos que eu não estou convencido que caiba no PIB. São maiores que o Brasil. É verdade que isso é feito ao longo do tempo, que depende do ritmo de crescimento do País e dos mecanismos de financiamento. Mas você não vai ter todos esses investimentos sem financiamento privado. Quem faz investimento é o setor privado. O governo, o melhor que faz é discurso. Provavelmente não vamos realizar todos esses investimentos: vamos fazer o pedaço de um, vai faltar a perna do outro. E provavelmente a maioria deles não vai ter nenhuma taxa de retorno.

Qual deve ser o papel de um economista hoje?

Alguns economistas não têm o mínimo de humildade. O nosso papel - Adam Smith (o mais importante teórico do liberalismo econômico) já dizia - é quem sabe ajudar o governo a fazer uma sociedade que cresça robustamente e seja mais justa. Mas não determinar o que a sociedade quer. Isso quem determina é a urna. Cada vez que você exagera no economicismo, a urna vem e tem põe fora. Cada vez que você exagera no populismo, a urna vem e te põe fora. É por isso que os países progridem. Ou você acha que o Chávez (o presidente da Venezuela) vai continuar errando a vida inteira? Ou ele vai para um poste ou vai pedir asilo em Cuba. O capitalismo é um processo. É por isso que sai dessa crise um novo capitalismo. O homem precisa disso e tem novas exigências. Resolveu entender agora, por exemplo, que abusou da natureza. Nos anos 70 ninguém pensava nisso. Pelo contrário. Eu lutava para importar poluição. Queriam acabar com a indústria de aço na Europa. Nós dizíamos: podem vir para o Brasil. Não acredito que a China possa continuar com essa expansão. Por uma razão simples. Para continuar a expansão, precisa importar outra terra. Os chineses compraram a África e estão tentando comprar o Brasil. Isso é uma grave miopia do governo brasileiro - permitir que um Estado soberano compre terras, minérios, recursos naturais em outro Estado soberano. Essas empresas chinesas são o próprio Estado chinês.

O senhor acha que o Brasil está a caminho de se transformar em um país desenvolvido?

O Brasil está caminhando e tem tudo para crescer 5% a 6% ao ano. Nós não temos competência para impedir esse crescimento. É claro que muitas coisas precisam ser feitas, como eliminar a burocracia. É óbvio que quem tem que ser consertado é o governo. Mas é uma idiotice dizer que precisa de governo fraco. Sem um Estado indutor, não há crescimento. Com um mínimo de inteligência, o Brasil é seguramente um país que já tem os recursos para, em 2030, ter um nível de vida equivalente ao da Europa Ocidental de hoje.

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