terça-feira, 13 de dezembro de 2011

'Crédito subsidiado impede queda de juros'

Autor(es): Por Cristiano Romero | De Brasília
Valor Econômico - 13/12/2011
 

Um dos pais do Plano Real, o economista Pérsio Arida acha que chegou a hora de o país dar um passo para reduzir ainda mais a taxa básica de juros (Selic), melhorar a distribuição de renda e aumentar a poupança doméstica, necessária para financiar o crescimento sustentado da economia. Arida defende o fim do que chama de subsistemas de crédito subsidiado, baseados em recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e da caderneta de poupança.
Segundo o economista, que presidiu o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) na gestão Itamar Franco e o Banco Central (BC) no início do governo Fernando Henrique Cardoso, esses subsistemas são "antiquados" e foram criados durante o período de inflação alta, e mantidos depois no de juros altos, para assegurar a oferta de crédito de longo prazo. Agora, com o desenvolvimento do mercado de capitais, tornou-se anacrônico e custoso para a sociedade.
Por causa do crédito subsidiado, o BC é obrigado a aplicar juros muito mais altos que o necessário para controlar a inflação.
"Por detrás de todo o sistema de crédito dirigido há uma ideologia: a de que o governo tem capacidade de discernir as oportunidades de investimento melhor do que o livre mercado. Essa ideologia parte de uma visão limitada, tacanha do funcionamento do mercado e das limitações dos governantes", explica.
Pérsio Arida, que hoje é sócio do banco BTG Pactual, defende que a remuneração, tanto do FGTS quanto da TJLP, passe a refletir o custo de captação do Tesouro Nacional por prazo médio equivalente.]
Valor: O senhor desenvolveu propostas para reduzir a taxa de juros, melhorar a distribuição de renda e aumentar a poupança doméstica. No que consistem essas propostas?
Pérsio Arida : Na minha opinião, o Brasil está pronto para algumas mudanças na intermediação financeira que trarão enormes benefícios à sociedade como um todo.
Valor: Onde está o problema?
Arida : No Brasil, há três subsistemas, por assim dizer, de aplicações financeiras e crédito que funcionam com regras diferentes do restante da economia. O primeiro, que é o menos preocupante dos três, é o formado pelos empréstimos baseados em aplicações que têm isenção de Imposto de Renda (poupança, Letras de Crédito Imobiliário, debêntures de longo prazo). O segundo é formado pelos empréstimos lastreados nos depósitos do FGTS. O terceiro é integrado por empréstimos lastreados no FAT, que, por sua vez, é alimentado por um imposto, o PIS. Nos três casos, o custo de captação de recursos é abaixo do de mercado e por consequência o crédito é oferecido abaixo do de mercado também. Isso parece ser bom, mas leva a taxas de juros mais altas do que o necessário para todo o resto da sociedade.
Valor: De que forma?
Arida : A razão é simples. O Banco Central tem que fixar a taxa básica de juros (Selic) de forma a manter a atividade econômica em níveis compatíveis com o sistema de metas para a inflação. Se a Selic deveria ser 9% ao ano, digamos, mas metade do crédito é oferecida a 7%, o Banco Central tem que fixar a Selic a 11% para fazer com que, na média, a taxa de juros seja 9% ao ano. O exemplo é apenas ilustrativo, é claro, mas mostra o óbvio: se alguém se beneficia tomando crédito abaixo do mercado, o restante da sociedade paga a conta arcando com juros mais altos. Não há mágica aqui. Se alguém está ganhando, o resto da sociedade está perdendo. O ponto de partida do que estou propondo é fazer com que todos os sistemas de crédito dirigido passem a conceder créditos a preços de mercado.
Valor: Mas isso não afetaria os negócios das empresas que tomam recursos no crédito mais barato? Isso não poderia paralisar os investimentos em curso na economia?
Arida : Afetaria sim, mas menos do que parece.
Valor: Por quê?
Arida : No meu exemplo, as taxas dos setores hoje beneficiados pelo crédito dirigido iriam de 7% para 9% e não para 11% ao ano. O importante é que a sociedade como um todo ganha. De partida, cai o custo de captação do Tesouro Nacional. Parece incrível, mas é verdade - os créditos subsidiados beneficiam grupos privados, não o Tesouro. Pagando menos juros, haverá mais espaço no orçamento público para abater dívida, diminuir impostos ou investir em infraestrutura. E além do Tesouro Nacional, a proposta beneficia todos os negócios e consumidores que hoje não têm acesso ao crédito subsidiado, ou seja, a grande maioria silenciosa dos atores econômicos. A outra grande vantagem da proposta é o efeito no lado do passivo.
Valor: Qual seria esse efeito?
Arida : Veja o caso do FGTS. Como os empréstimos lastreados no FTGS são concedidos a taxas muito abaixo das do mercado, a remuneração do fundo tem que ser muito abaixo à do mercado também. Os números são eloquentes. Um real depositado em uma conta do FGTS em 1994, quando o Plano Real foi lançado, vale hoje R$ 4,12. O mesmo R$ 1,00 aplicado no CDI (Certificado de Depósito Interbancário) valeria R$ 25; líquido de impostos seria R$ 21,40. Ou seja, a rentabilidade acumulada de mercado foi mais de cinco vezes a rentabilidade do FGTS.
Valor: O trabalhador é quem mais perde, então?
Arida : O que acontece é que a forma de reajuste do FGTS é uma expropriação invisível da renda dos trabalhadores. Como a contribuição do FGTS é compulsória, o trabalhador não tem defesa. Quem ganha com essa expropriação invisível são as empresas que têm acesso aos programas governamentais de crédito que repassam recursos do FGTS. Agora, se os empréstimos lastreados no FGTS fossem concedidos a taxas de mercado, os depósitos do fundo poderiam ser remunerados a taxas de mercado também. Os trabalhadores como um todo ganhariam enormemente com o que estou propondo. A distribuição de renda ficaria mais igualitária e a poupança agregada do país cresceria.
Valor: E no caso do FAT?
Arida : Antigamente havia uma forma de poupança compulsória com contas individuais, como o FGTS, que se chamava PIS-PASEP. Depois isso acabou e virou um imposto, o PIS. Esse imposto é canalizado para o FAT, um fundo de natureza contábil, que por sua vez empresta ao BNDES e a outros bancos oficiais. É uma construção cerebrina e tortuosa, mas está na Constituição. O que estou propondo é que os empréstimos lastreados nesse imposto sejam concedidos a taxas de mercado. Logo, a remuneração do FAT, que é quem concede os empréstimos, vai a taxas de mercado também. Obviamente, o FAT teria mais recursos.
Valor: Com o FAT tendo mais recursos, o BNDES poderia emprestar mais?
Arida : Essa é uma discussão interessante. O que estou propondo, tudo o mais constante, aumentaria os recursos do FAT. Há três formas de usar ou consumir esses recursos.
Valor: Quais são?
Arida : A primeira é o BNDES emprestar mais para o setor privado, desde que, é claro, a taxas de mercado. A segunda é o BNDES tomar menos recursos emprestados do Tesouro Nacional. A grande alavancagem recente do BNDES veio do Tesouro. Isso provoca déficit público porque o Tesouro, para ficar no meu exemplo, toma recursos a 11% ao ano para emprestar ao BNDES a 7%. Se o FAT tiver mais dinheiro, o BNDES precisará tomar menos recursos emprestar recursos do Tesouro e isso reduzirá o déficit público.
Valor: O senhor mencionou três alternativas. Qual é a terceira?
Arida : A terceira alternativa é diminuir a alíquota do PIS [hoje, de 1,65%, sobre a receita bruta das empresas quando não cumulativa ou 0,65% na modalidade cumulativa], que é o imposto que alimenta o FAT, de forma a manter os recursos do FAT onde estão.
Valor: Dos três usos, qual é o de sua preferência?
Arida : Preferiria, nas circunstâncias de hoje, reduzir o déficit público ou iniciar uma desoneração fiscal reduzindo a alíquota do PIS a ampliar a atuação do BNDES.
Valor: Se as mudanças propostas pelo senhor são tão vantajosas e simples, por que não foram feitas antes?
Arida : Todos esses sistemas de crédito dirigido foram criados há muito tempo, bem antes do Plano Real. Acontece que o país mudou muito ao longo desses 17 anos. O crescimento do mercado de capitais e do crédito tornou o Brasil maduro para empreender essas mudanças.
Valor: Por que o país estaria maduro para dar esse passo agora?
Arida : Para você ter uma ideia do que estou falando, o volume de debêntures privadas era uma proporção ínfima do PIB quando o Plano Real foi lançado. Já tinha atingido 10% do PIB quando [o presidente] Lula foi eleito pela primeira vez. Hoje, está beirando 22% do PIB. Idêntica evolução aparece nos volumes totais de crédito ou nos prazos dos financiamentos.
Valor: De que maneira?
Arida : Antes do Plano Real, era tudo de curtíssimo prazo e hoje não é mais assim. Na verdade, estamos vivendo um processo de normalização dos mercados financeiros. É um dividendo, digamos assim, de longo prazo da estabilização e que nos vai ajudar a crescer por um bom tempo ainda. Mas embora ainda não tenhamos um mercado financeiro inteiramente normalizado, esses subsistemas antiquados de crédito dirigido, criados quase todos na década de 70 do século passado, precisam ser mudados justamente para acelerar a queda da taxa de juros.
Valor: Esses sistemas de crédito dirigido ajudaram a financiar o investimento no período de inflação crônica e depois de juros altos. A inflação caiu, mas os juros permanecem elevados. Por que esses sistemas são antiquados?
Arida : Por detrás de todo o sistema de crédito dirigido há uma ideologia: a de que o governo tem capacidade de discernir as oportunidades de investimento melhor do que o livre mercado. Essa ideologia parte de uma visão limitada, tacanha do funcionamento do mercado e das limitações dos governantes. Mas, de fato, em alta inflação como tínhamos antes do Plano Real, essa ideologia tinha uma base real, digamos assim. É que, sob alta inflação, o mercado de crédito privado funcionava de modo atrofiado. Simplesmente inexistia financiamento de prazo longo. Nessa medida, havia uma falha de mercado, provocada não pelo mercado, mas pelo desajuste macroeconômico da hiperinflação. Daí, a necessidade de criar formas de poupança compulsória que lastreassem o investimento em áreas que o governo decidia que era necessário investir. Hoje, o crédito e o mercado de capitais se desenvolveram muito, como mencionei antes, e isso cria uma nova realidade.
Valor: Mas, além de colocar o preço do crédito a níveis de mercado, o que seria necessário mudar?
Arida : A pergunta é interessante, mas, se conseguirmos fazer essas mudanças, já seria extraordinário. Estamos falando de melhorar a distribuição de renda, reduzir a taxa de juros fixada pelo Banco Central e reduzir o déficit público ou desonerar impostos. Não é pouco! Poderíamos também ir adiante e dar autonomia aos trabalhadores para escolher o perfil do investimento da sua conta no FGTS. Poderíamos rediscutir políticas de empréstimos, que setores, que finalidades, etc. Mas, se corrigirmos o erro de precificação, corrigindo a mercado o FGTS e o FAT e terminando com os subsídios no crédito, já seria ótimo. É muito comum a tentação de começar do zero, de discutir qual é o sistema ideal. Mas o Brasil tem sua história e sua Constituição. O que estou propondo é um passo que ajuda a reduzir a disfuncionalidade do sistema. E, no detalhamento, teríamos que pensar como fazer a transição do sistema atual para o novo.
Valor: Indo, então, para o detalhamento: hoje o FGTS é remunerado a TR + 3% ao ano e o FAT é remunerado pela TJLP (atualmente, fixada em 6% ao ano). Como ficariam esses dois fundos?
Arida : Esses são números cabalísticos - 3% no FGTS, 6% na poupança, 12% no teto de juros da Constituição [limite retirado do texto constitucional em 2003]. Não têm sentido econômico algum. E a TR é um índice discricionário, pode ser redefinido facilmente. O importante é acertar o conceito.
Valor: De que forma?
Arida : Uma maneira simples de implementar o que proponho é fixar a remuneração do FGTS e da TJLP de acordo com o custo de captação do Tesouro por prazo médio equivalente. O critério é objetivo, simples de implementar e já resolveria boa parte dos problemas. O conceito é fazer com que as captações compulsórias de longo prazo sejam balizadas pelas captações de longo prazo no mercado do Tesouro Nacional. Aliás, esse era o conceito original da TJLP. O LP (longo prazo) da TJLP era para enfatizar que a taxa de juros deveria refletir o custo de longo prazo do Tesouro Nacional.
Valor: O senhor mencionou a existência de "dividendos" da estabilização. A ideia é que a normalização dos mercados financeiros ajuda no crescimento. Como isso funciona na prática?
Arida : A estabilidade macroeconômica melhora a alocação de recursos porque possibilita ao sistema de preços sinalizar melhor a escassez e a abundância. Além disso, há um processo de normalização financeira. Sob alta inflação, a economia vira a economia do "overnight", os prazos de empréstimos ficam reduzidos ao mínimo, a taxa de juros fica absurdamente alta e o crédito é limitado. Tudo começou a mudar com o Plano Real, mas é um processo, não uma mudança súbita, e um processo que depende fundamentalmente de confiança. Hoje já temos as menores taxas de juros reais e os maiores índices de crédito em relação ao PIB da história recente, mas ainda estamos longe da normalidade.
Valor: Por quê?
Arida : O mercado de hipotecas, por exemplo, ainda está na sua infância. Era menos de 1% do PIB quando do lançamento do Plano Real, está chegando a 4% do PIB agora. Mas ainda estamos muito abaixo do Chile, para dar um exemplo aqui da América Latina, onde o mercado de hipotecas é quase 20% do PIB. O processo de normalização dos mercados financeiros é uma fonte endógena de crescimento porque, intuitivamente falando, destrava os canais de transmissão da poupança para o investimento. O crucial aqui é manter os pilares da estabilização intactos - regime de metas para a inflação, superávit fiscal e câmbio flutuante - para evitar qualquer quebra de confiança no padrão fiduciário.

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