Domingo, 11 de dezembro de 2011
Metamorfose social + Comentários em azul
Há hoje no Brasil uma orientação alienante que tenta impedir o debate sobre a natureza e dinâmica das mudanças econômicas e sociais recentes, incapaz de permitir a politização classista do fenômeno de transformação da estrutura social e sua comparação com outros períodos dinâmicos do país. O comentário é de Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em artigo na revista Teoria e Debate, dezembro, 2011.Em seguida etc. Eis o artigo.
A metamorfose pela qual passa a atual estrutura social brasileira está a exigir o desenvolvimento de interpretações mais profundas e abrangentes, capazes de ir além da abordagem superficial e muitas vezes tendenciosa a respeito da existência de uma nova classe média. Pode-se até estranhar a inclinação de certas visões teóricas recentes que buscam estabelecer para determinado estrato da sociedade – agrupado quase exclusivamente pelo nível de rendimento e consumo – o foco das atenções sobre o movimento geral da estrutura social do país. {De fato, o marketing político invadiu o noticiário desde 2005. Antes, até o escândalo do mensalão haver rearranjado, ao que parece para o médio e o longo prazos da política partidária brasileira, o esquema de repartição da criação da riqueza social entre as oligarquias da terra, do ar e do mar - querendo dizer, por agora, a administração federal do patrimônio e das receitas, as empresas de telecomunicação e certas indústrias de ponta e de portos do capitalismo -, o lulismo era temido pelas elites. Agora nós podemos compreender que não era um medo pela pessoa dele e de seu partido propriamente, mas pela entrada de novos sócios, que levariam a economia a funcionar e, portanto, à centralização de capitais, a novos ganhadores e novos perdedores. A lei de um perder para outro ganhar, de tão real, já nos manuais de economia estabeleceu-se como consensual, sublinhando o assim chamado papel da inovação e da tecnologia. No caso do Brasil, a corrupção é a condição para o verdadeiro método de negociação dos contratos, que é o da denúncia da corrupção. Assim os velhos capitais mantêm os novos sob controle. Assim, pós-mensalão - Pochmann prefere a referência estatística da relação entre rendas do trabalho e da propriedade, porque, para ele, ao falar de nova classe média, classe c, classe d etc., estamos falando da mobilidade existente na base da pirâmide social brasileira no início do século 21 sem que tal signifique uma assumpção classista por parte da população trabalhadora. Não terá sido esse o fenômeno que dá a compreensão do período, conforme deixa claro. Ao enfatizá-la e privilegiá-la, os analistas tendenciosa e superficialmente discursam. No entanto, o fenômeno é notável e deve fazer parte da explicação. Conforme o IBGE, o ciclo de expansão da economia brasileira no início do século 21 divide-se em duas fases, se bem distintas, contínuas, conferindo inteligibilidade ao período. (a) 1994, virada do Plano Real, até 2004; em seguida, (b) a política de valorização do salário mínimo e de formalização do setor de serviços, de 2004 até o presente momento (até a presente crise?). E não, não o é, sem sombra de dúvida, o significado do período FHC-Lula, referente à aristocratização de uma fração da classe trabalhadora. É, pelo contrário, a internacionalização dos grandes rentistas e exploradores do solo e do subsolo nacional. Os sindicatos deram prova de que estão anos-luz atrás de seus operários de ponta, que eclodem greves completamente legítimas e desarticuladas, como um evidente grito de socorro. Isto já nos dá a idéia do que a ponta do capitalismo é: senão dúplice, uma higiênica e legalista, outra insalubre e despótica. Para abastecer o nordeste de "energia limpa" (que, de limpa, está bem suja; quer dizer, apenas, não-proveniente da queima do carvão, que é regra na maioria das indústrias do mundo), a partir dos canteiros de Jirau e Santo Antônio; quem sabe, energia para exportação e, assim, repetição de Itaipu, exportando energia para arrancar preferências alfandegárias aos estados vizinhos e chegar a ingerir sobre suas economias. Bairros inteiros de Petrópolis, que desmoronaram no verão de 2010-11, não são reconstruídos a tempo da volta da estação das trombas d'água porque funcionários públicos apropriaram-se indebitamente dos recursos desesperados. É mesmo de se rir que o Império desabe cem anos e duas décadas depois de sua queda institucional e é, consoante a Pochmann, mesmo de se doer que cidadãos tão bem-pensantes possam sustentar a posição de tais elites e fabricar, com o seu tearzinho a vapor periférico, idéias para a FAO, a COP e brilhar, achando ótimo junto, com os enganadores na abertura da 66a. Assembléia da ONU. O primeiro contra-argumento que podemos antepôr à idéia que vem junto com a da nova classe c é que seu nível de rendimento e consumo não é tão-somente um "nível", mas uma cadeia de falso ouro, que reluzente talvez afete liberdade e satisfação, quando não passa do resultado do aproveitamento mais ou menos calculado do mais ganancioso capital. Não é de liberdade que o consumo reproduz-se, enfim. Em segundo lugar, e o índice atualizado de desenvolvimento humano corroboram-no, para a irritação de Lula, nada do que tal nova classe média conquistou consistiu, positivamente, na redução dos extremos de pobreza. A base da pirâmide social moveu-se para erguer ainda mais alto, alçando-se como um pedestal em relação à ela, os extraordinariamente ricos, que ficaram mais ricos. O próprio governo relativiza sua vitória, recolocando como meta, aqui honestamente, é verdade, acabar com a miséria, que subsistiu à dita diminuição do número de pobres; talvez tenha diminuído a massa absoluta dos trabalhadores em situação de pobreza etc, na visão otimista que Pochmann critica tão sentidamente, mas não os parâmetros concretos, de gente que vive na extrema pobreza e da própria pobreza - porque o capitalismo brasileiro reproduz-se, estruturalmente, sobre tal polarização social crescente, tanto quando está em crise, tanto quando se expande. Poxa, quanto a mim, eu fico é mordido que tais e tais tearzinhos de idéias não proponham e façam valer um planejamento de educação de primeiro e segundo graus que estudem literatura, filosofia e ciências puras, da matemática à música, e, em vez disso, fiquem fazendo festinha pra programas de adestramento de engenheiros sem vocabulário, embora bilíngues, que sequer abrangem a rede de ensino superior integralmente. Entre outros descaramentos, este não libertará a indústria nacional, seja rural, seja urbana, de suas limitações, gargalos, irrelevância. A seguir, voltando ao texto de Pochmann, este se espantará da vinculação da mídia, do governo e da inteligentsia; repetindo minha idéia, e resumindo-a ainda em azul, essa vinculação deu-se depois da primeira chantagem, provincianamente chamada de mensalão, selando seu compromisso. Se, hoje, ainda a figura de Lula é evitada, os velhos capitais fazem-no para mantê-lo sob controle, temendo, desta vez, que lhes sobrepuje em populismo, despotismo. A segunda inflexão do ajuste começado em 1994 pôde ser executada assim que este rearranjo doméstico-partidário foi feito e, do ponto de vista puramente econômico, quer dizer, do ponto de vista da fantasia econômica, correspondeu, a partir de 2004, da inversão dos capitais então liberados e, portanto, como força autônoma, necessária à expansão soberana do país no cenário mundial, cuja hora havia soado.}
Mas a causa de maior constrangimento termina sendo o viés político expresso por monopólios sociais, pelos meios de comunicação e seus “oráculos” midiáticos. Ou seja, a manipulação do consciente populacional em torno dos desejos mercantis e, por que não dizer, propagandistas do consumismo e da negação da estrutura de classe em que o capitalismo termina por moldar a sociedade. Também pode ser agregada, nesse mesmo contexto, a opção política rasteira com que certos intelectuais engajados à lógica mercantil se associam à retórica de classes de rendimento desprovida de qualquer sentido estrutural e com tradução fundamentalmente no caráter propagandista a respeito dos imperativos do mercado. Em síntese, observa-se que o arbitrário tratamento estatístico de dados da realidade pode levar a reorientações de políticas públicas, quando não do próprio reposicionamento partidário. {"nova classe média" por "classes de rendimento", para os especialistas, diz tudo, mas não para o indivíduo médio brasileiro. Seria preferível que o professor Pochmann ousasse algo mais divertido, que comunicasse o rebaixamento em causa, exagerando algum traço da coisa. Algo como: "...não são uma nova classe média, mas pessoas que, em conjunto, do ponto de vista da economia, formam como um vale-compras humano para o capitalismo, feito para ser gasto até o último centavo. Esvaído o dinheiro deste mês, em seguida, de satisfatório, material e espiritualmente falando, com nada ficam, e devem voltar aos seus empregos - um, mais de um, extensas jornadas - para recarregá-lo minimamente. As coisas que compram, os bens de consumo duráveis, como os não-duráveis, não duram; a bem da verdade, não são comercializadas para o benefício dos que encarnam o vale-compras, mas para encher os bolsos daqueles que, atrás do balcão, recebem os valores neles inscritos".}
Análises mais detalhadas sobre o recente movimento geral na estrutura social brasileira estão ainda por ser realizadas. E é essa perspectiva que o presente artigo persegue, procurando lançar algumas luzes sobre a mobilidade existente na base da pirâmide social brasileira no início do século 21. Isso porque se parte da hipótese central a respeito da inconsistência das atuais definições e identificações sobre a existência de uma nova classe média no país.
Resumidamente, entende-se que não se trata da emergência de uma nova classe social e, muito menos, de uma classe média específica [nota 1]. {No trecho a seguir, a interpretação de Pochmann: em vez de um experimento soberano, o crescimento econômico do Brasil desde FHC processou-se conforme lhe foi ditado pelo Banco Mundial e, vulgarmente, difunde-se sobre o nome de globalização neoliberal.} O que há, de fato, é uma incessante orientação alienante orquestrada para o sequestro do debate sobre a natureza e dinâmica das mudanças econômicas e sociais recentes, incapaz de permitir a politização classista do fenômeno de transformação da estrutura social e sua comparação com outros períodos dinâmicos do Brasil. O mesmo parece se repetir em outras dimensões geográficas do globo, sobretudo na periferia do capitalismo, conforme o interesse de instituições multilaterais como o Banco Mundial, entre outras, em difundir os êxitos da globalização neoliberal. Sobre isso, aliás, começa a surgir mais recentemente uma leitura crítica à superficialidade exposta no tratamento do tema da classe média [nota 2]. {De fato, nos grandes meios de comunicação, essa palavra, de "neoliberalismo", sumiu desde o episódio do mensalão, associada à governança do PT, e reaparece aqui e ali somente onde e quando a oposição, ela mesma neoliberal, reconhece que perdeu a condução do ajuste que começou, e denuncia as "privatizações disfarçadas". Enquanto isso, os intelectuais que deveriam, pelo menos por honestidade de ofício, aproveitar o mote, debandaram para a ideologia de um novo desenvolvimentismo brasileiro, e já não se sabe se foi o presidente dos Estados Unidos quem decretou que o futuro do Brasil presentificou-se ou se foram as agências de risco ou esses mesmos intelectuais que, anos atrás, tinham vergonha de sua pátria desigual. A assim chamada "lição-de-casa" feita, para adequar-se e ativar as reservas de riqueza do ciclo industrial anterior, menos por esforço direto do Banco Mundial do que dos novos políticos profissionais (embora seguindo as metas daquele e que, a cada denúncia contra si, revelam sua face verdadeira de "consultores privados"), a inteligentsia encontrou um jeitinho de retirar todo o mal-estar do livro de S. Zweig ("País do futuro... sem presente que valha mais do que um hiato escapista na irracionalidade do mundo"), secular entre os letrados, diga-se de passagem, desde os tempos do Romantismo). Com o seu tearzinho a vapor de idéias fabricam vaidades comercializáveis, reprodutíveis, muito produtivas, e seguem.}
No Brasil, na melhor tradição teórica progressista, encontram-se dois excelentes estudos interpretativos dos fenômenos relacionados às grandes transformações da sociedade brasileira, bem como abrangem a politização gerada pelos movimentos de ascensão social durante a década de 1970. {Aqui, não está claro o por quê desse recuo: se a coisa é explicar o presente, que que tem a ver o milagre brasileiro? Bem, ao que parece, tais autores, F. Novais, João M.C. de Mello, E. Sader, operam conceitos que vale a pena resgatar para a análise. E, como ontem, aquilo que é riqueza nacional significa miséria e subjugação do povo.} Naquela época, o Brasil conviveu com forte ritmo de expansão econômica influenciado fundamentalmente pelo dinamismo do setor industrial, que foi o responsável também pela geração de grande parte das ocupações, sobretudo de maior remuneração (período identificado por alguns como sendo o “milagre econômico” brasileiro). Concomitantemente, assistiu-se também à mobilidade de vários segmentos sociais, sobretudo daqueles provenientes do meio rural, enquanto subproduto da modernização conservadora e selvagem do campo.
No livro interessante de João M. C. de Mello e Fernando Novais [nota 3], por exemplo, compreende-se o impacto geral do movimento de alteração das estruturas produtivas sobre o conjunto da sociedade brasileira. Também se pode constatar como a força do modo de produção capitalista intercalado com o autoritarismo levou à conformação de singulares anomalias de exclusão social no país.
Naquele mesmo contexto, outro importante livro, de Eder Sader [nota 4], complementa a interpretação a respeito da singularidade observada no auge da economia industrial combinada com mobilidade social, por meio de uma preciosa análise sobre a formação de um novo sujeito social coletivo, responsável pelo protagonismo da luta pela redemocratização e por uma nova forma de fazer política no Brasil. A partir do entendimento sobre o difícil cotidiano das classes populares na década de 1970 numa grande metrópole como São Paulo, apresenta as condições de organização social e renovação do sentido da política. Problemas específicos encontrados nos locais de trabalho ou de moradia eram transformados em plataforma do movimento social reivindicativo, capaz de motivar conflitos e lutas de empoderamento de novos agentes sociais.
{Agora, os dados do presente vão confirmar que as condições de vida dos novos trabalhadores, para o qual um novo mercado e novos capitais estruturaram-se, não é das melhores, considerada por si mesma. Depois do ajuste dos anos FHC, uma expansão seguiu-se, realizando uma ascensão social paradoxal, pauperizante, que recuperou um nível regressivo.} Na virada para o século XXI, o Brasil conviveu com significativas transformações na estrutura social. Nos quinze anos que se seguiram ao estabelecimento do Plano Real (1994), responsável pelas bases da estabilização monetária, podem ser identificadas, por exemplo, duas tendências diametralmente opostas em relação ao comportamento das rendas do trabalho e da propriedade no Brasil, segundo informações oficiais do IBGE. Assim, por nove anos seguidos, houve a trajetória de queda na participação salarial na renda nacional, acompanhada simultaneamente pela expansão das rendas da propriedade, ou seja, lucros, juros, renda da terra e aluguéis. Entre 1995 e 2004, por exemplo, a renda do trabalho perdeu 9% do seu peso relativo na renda nacional, enquanto a da propriedade cresceu 12,3%.
Uma segunda trajetória ocorreu a partir de 2004. Até 2010, por exemplo, acumularam-se seis anos seguidos de crescimento da participação dos salários na renda nacional, ao passo que o peso relativo da propriedade decaía sucessivamente. Entre 2004 e 2010, o peso dos salários subiu 10,3% e o da renda da propriedade decresceu 12,8%. Com isso, a repartição da renda nacional de 2010 entre rendas do trabalho e da propriedade voltou a ser praticamente o observado em 1995, início da estabilização monetária.
Essa significativa alteração na relação entre rendas do trabalho e da propriedade durante a primeira década de 2000 encontra-se diretamente influenciada pelo impacto na estrutura produtiva provocado pelo retorno do crescimento econômico, após quase duas décadas de regressão neoliberal. O fortalecimento do mercado de trabalho resultou fundamentalmente na expansão do setor de serviços, o que significou a difusão de nove em cada grupo de dez novas ocupações com remuneração de até 1,5 salário mínimo mensal. Adicionado às políticas de apoio às rendas na base da pirâmide social brasileira, como elevação do valor real do salário mínimo e massificação da transferência de renda, houve o fortalecimento das classes populares assentadas no trabalho. {Está implícito na observação de Pochmann, infelizmente truncada, dita pela metade: quem perdeu propriedade, ou renda da propriedade, foram os trabalhadores enquanto população global, e não os ricos, os patrimonialistas, os grandes rentistas. Aqui, claro, trata-se de interpretação minha, extrapolando as linhas de Pochmann. Reafirmo: os trabalhadores perderam renda da propriedade porque trocaram-na pela importância acrescida da renda do trabalho, depois de 2004. Noutras palavras, foram expropriados e incorporados ao mercado; a fusão, para criar as campeãs nacionais, da Raízen à BRFoods (e seus “agricultores integrados), passando pela quebra do PanAmericano (escondendo, pelo estrondo que fez, o avanço do HSBC e cia. e demais gerentes de fundos desterrados sobre os bancos pequenos e médios) e mais: foram incorporados ao mercado porque, individualmente, encontram-se mais expropriados. Houve concentração capitalista, no sentido da acumulação capitalista; mais gente perdeu terra, mais gente perdeu títulos, poupança; mais gente investiu o pouco de que dispunha. Noutros tempos, diríamos "choque de capitalismo", de "mercantilização da vida", em vez de repercutir "empreendedorismo individual", "Eu S.A.", "guerreiros", "batalhadores" vencedores... porque, aparentemente, consomem eletrodomésticos e eletroeletrônicos portáteis.}
De maneira geral, esse movimento de expansão dos empregos de baixa remuneração se mostrou compatível com a absorção de enorme excedente de força de trabalho gerado anteriormente pelo neoliberalismo. Dada a intensidade desse movimento, a condição de país com oferta ilimitada de mão de obra começa a ser questionada, pois já há sinais de escassez relativa de força de trabalho qualificada, o que somente chegou a ser conhecido pelos trabalhadores brasileiros na primeira metade da década de 1970. {De fato, confrontando os dados da série histórica da relação renda/propriedade, se a taxa monetária da renda do trabalho aumentou, sua participação na renda nacional decresceu; de um lado da ponte, o das elites, os rentistas expandiram e concentraram riqueza social. Pochmann não dá nome aos bois que permitiram a capitalização do BNDES, contudo, nem clarifica quais frações dos grandes foram escanteadas. Mas os há, e as reclamações de certos frigoríficos, certas siderúrgicas, certos outros bandidos são abafadas. Do outro lado da ponte, do lado dos trabalhadores, numa palavra, mais gente foi deslocada dos empregos industriais e adentrou o setor de serviços: de maneira precária, malgrado a carteira de trabalho, obrigada a pagar pelos direitos básicos da cidadania duas vezes, na fonte e na fila do balcão, e recebendo salários em média mais baixos que o do ciclo industrial encerrado na virada da década de 90. Daí a impressão, que um comunicado recente do IPEA exprimiu, de a formalidade, em vez de significar apropriação e empoderamento, no atual modelo, confudir-se com terceirização. Um outro Comunicado do IPEA, o de no. 111, fala mais desse movimento, que não é o de posição de classe dos trabalhadores, mas o de acumulação e reprodução do capitalismo brasileiro. Para a atual virada brasileira, o capital vem do setor de exportação de ferro, soja, milho, frango, boi, minério, fibra, proteína, enquanto os trabalhadores e o estado entram, como perderores, com a terra e a força de trabalho subprecificadas. Aqui os meios para a acumulação e a reprodução, que a especulação infla e transforma em mercadorias sobreprecificadas. A bolha de crédito dos bancos em operação no país infla ainda mais tais recursos e destina-os para os canais de valorização, especula com eles seguida e compulsivamente. Via impostos domésticos e taxas de alfândega (porque os bancos pagam impostos, sim, como e tanto mais quanto os exportadores), os sócios encastelados na burocracia governamental saem ganhando, por sua vez, também. Cuidadosamente, retroalimentam o sistema, que se disfarça de regime de metas, mas que, na verdade, é de meta única: superávit primário. Para uma apreensão pontual e concreta: mais casas financiadas pelo governo, enquanto o déficit da infra-estrutura básica na mesma proporção cresce e reproduz as desigualdades, porque o programa Minha Casa, Minha Vida acabou preterindo a assim chamada nova classe média, sem renda suficiente para financiar a saída do aluguel, malgrado tenha sido idealizado, a princípio, para diminuir o déficit habitacional e minimizar a entrada em cena desses novos personagens.}
Mesmo com o contido nível educacional e limitada experiência profissional, as novas ocupações de serviços absorvedoras de enormes massas humanas resgatadas da condição de pobreza permitem ascensão social inegável, embora distante de qualquer configuração que não a de classe trabalhadora. Seja pelo nível de rendimento, seja pelo tipo de ocupação, seja pelo perfil e por atributos pessoais, o grosso da população emergente não se encaixa em critérios sérios e objetivos que possam ser identificados decentemente com a classe média. {Não é o estado de bem-estar social, não é algum tipo de keynesianismo, não é uma sociedade do trabalhismo.} São associados, sim, às características gerais das classes populares, que por elevar o rendimento ampliam imediatamente o padrão de consumo. Não há, nesse sentido, nenhuma novidade, pois se trata de um fenômeno comum, uma vez que trabalhador não poupa, gasta tudo o que ganha. {Propriedade, portanto, apenas a fundada na exploração do trabalho alheio, como na primeira Revolução Industrial, se se quiser, ou como sempre foi entre nós e o exemplo anterior, do milagre econômico, ilustrou. À margem, que quer dizer "classes populares", no texto de Pochmann, com tal acepção pejorativa? Parece um preconceito às avessas, quando, a meu ver, o adjetivo deveria desdobrar-se de "pauperizados" e, confirmando a lógica do texto, evitar o termo de "classe", escolhendo, talvez, faixa, estamento, sedimento, fração, sobrepopulação relativa.}
Em grande medida, o segmento das classes populares em emergência apresenta-se despolitizado, individualista e aparentemente racional, conforme busca estabelecer a sociabilidade capitalista. A ausência percebida do movimento social em geral, identificado pelas instituições tradicionais como associação de moradores de bairros, partidos políticos, entidades estudantis e sindicais, reforça o caráter predominantemente mercadológico que intelectuais engajados e mídia comprometida com o pensamento neoliberal fazem crer. Desejam, assim, além de fortalecer o conformismo sobre a natureza e dinâmica das mudanças econômicas e sociais do país, domesticar e alienar as possibilidades de, pela política, aprofundar as transformações das estruturas do capitalismo brasileiro do início do século 21. {Noutras palavras: a política da Nova República, desfetichizada, não passa de um mecanismo de valorização do capital, contra o trabalho, incorporando ao capital variável, se em termos absolutos uma massa expressiva, e com a qual é possível fazer politicagem, em termos relativos, uma reduzida parcela da população trabalhadora; incorpora sedimentos da sobrepopulação - nem da fluente, nem da latente, nem da estagnada; trata-se dos sedimentos ainda mais fragilizados, aqueles pauperizados aptos que, noutro contexto, poderiam passar por camadas pré-capitalistas. No linguajar provinciano da inteligentsia, parte dos "excluídos", que foram criados pelo ajuste do Plano Real, recentemente, ou pelo milagre econômico, no arrocho autoritário das décadas de chumbo, e vieram a ser reinventados como "incluídos" pelo investimento do estado lulista. Não enriquecem, não se empoderam nem se apropriam, através de seu trabalho produtivo, uma vez subsumidos. Tal metamorfose, ou mobilidade, é socialmente comandada pelo capital constante em expansão na nova fronteira de acumulação asiática, por sua vez serva dos fundos de investimento que as agências de risco representam (e que, no momento, estão extorquindo a União Européia, com a benção do FMI). Neste passo, nestas breves linhas, não caberia a exposição inteira do argumento. Que fiquem estas palavras, à espera de espichamento: a fronteira industrial asiática, por sua vez, também não corresponde ao assim chamado centro do capitalismo. Nos meus termos, o Brasil atual não é uma fronteira da acumulação capitalista porque faz as vezes de fronteira agrícola, mas porque se vinculou à fronteira de serviços do capitalismo (ou da economia-mundo), de modo que, mais perto da verdade, somos é uma fronteira dos serviços, menos da China do que da "nação desterrada dos fundos de investimento", que faz girar as máquinas do abastecimento com as qual os sócios especulam, ao manter falsamente nutrida e materialmente insatisfeita a população trabalhadora em geral e, de modo vinculado, afeta a ilusão de soberania na periferia emergente; seu espectro abrenge a ditadura chinesa, russa e, deste lado, o colorido indiano, coreano, sul-africano, brasileiro. É lucrativa e nacionalista, numa palavra, a heterogeneidade estrutural da formação social brasileira. A depender do parceiro multilateral, a vitrine muda: ora o setor de exportação, ora o setor de serviços doméstico. Como a inteligentsia pretende, inconscientemente, superar a condição colonial, ressalta o setor de serviços e transmuda-o na solução de todos os problemas... e como se funcionasse por si só, sozinho, sem necessidade de financiamento externo, só "vontade política"! Uma segunda explicação possível para a mediocridade da inteligentsia, desta feita em nível consciente, da ordem do mecanismo de defesa do ego: as estruturas capitalistas de ensino e pesquisa não toleram o livre-pensamento. Como o governo federal, desde Paulo Renato Souza a Fernando Haddad, menosprezam a ciência social e as humanidades - alguém vai dizer que, diferente do primeiro, o sr. Haddad concede incentivos à pesquisa e à inovação nas carreiras de exatas e, portanto, a observação é injusta - e eu retrucarei, mais uma vez, que adestrar engenheiro pouco tem a ver com política pública de pesquisa e inovação, que é o fim a que se propõe o programa do “ministro do ENEM” e o então ministro de C,T&I, ex-senador, Aluísio Mercadante, com o PRONATEC. Também não vai adiantar levantar institutos técnicos pelo Nordeste (se, o salário dos futuros operários corresponder a uma vida em que a zona franca de Manaus, em vez de ser duplicada, for privatizada e esgarçada numa rede). O que falta, a olhos vistos, são técnicos e planejadores nas pequenas cidades, a fim de empoderarem-se da fonte de riqueza – energética, minero-metálica –, mormente situada na sua vizinhança, na sua “microrregião”, e que tende, entre nós, a edificar e centralizar-se nas médias cidades, de volumosa receita e, neste modelo, por conseqüência, com abismal distribuição da propriedade. A biografia de Graciliano Ramos oferece um exemplo, se bem o Estado Novo e as próprias limitações de planejamento e mobilização popular de Graciliano, mais atento à correção liberal e republicana, de escritório, da seção brasileiro do stalinismo do Partidão, por sua vez, pisassem na bola. As ciências humanas, dito sem ilusões, como outrora a Economia Política, serviria para isso (numa vertente cartesiana, é claro). Formar para colonizar o interior: assim é que, lá no fundo encoberto e esquecido das políticas de fronteira no Brasil, iniciada lá no longe dos tempos do visconde de Itaboraí, objetivavam a racionalização do povoamento do vasto território. Nunca se cumpriram assim. A história da marcha a oeste da civilização, entre nós, é bárbara. Essa fixação pela metrópole e pelos adensamentos compartilham os partidos políticos brasileiros com a “nossa” indústria automobilística multinacional; e Maluf é, afinal, a encarnação de seus interesses, como as pontes e os viadutos – que todos sabem terem sido construídos para serem destruídos – são a conseqüência da dominação do público pelo privado a mais despudorada possível (como o resto do sistema de transporte e, no todo, a paisagem de São Paulo). Ademais, a inimizade com as letras e as artes do neoliberal, em suas duas etapas brasileiras, é sustentada pela constante diplomação de tecnocratas adestrados em sua pureza seja na FGV, dando de um tipo, seja na Unicamp, dando do outro, entrando e saindo da fôrma elitista e regulada como ao momento convém -, de modo que não há possibilidade de ascensão social para os colegas dos engenheiros, geólogos e biólogos, em irmandade a eles, a não ser prostituindo-se para os vencedores do modelo neoliberal, na governança da vez, uma vez que a idéia de valorização da rede de instrução e pesquisa públicas não se converte em política pública, não transforma a rede de ensino nas metrópoles, nas cidades e nos bairros rurais. Valorizar a profissão de professor nem mais aparece no papel, se querem saber; da boca dos políticos profissionais, giram pelo palanque grande ou pequeno e vão direto furar a camada de ozônio e causar o aquecimento global. Aqueles intelectuais que conseguem estabilidade em alguma instituição pública, ao dobrarem a esquina, sentem o bolso reclamar de vacuidade e precipitam-se a tais fundações e institutos privados, pra completar renda. Botam o tearzinho a vapor de idéias pra funcionar prossistemicamente, ao gosto do cliente, e, como nos tempos da manufatura, rifam sua liberdade pela liberdade em si. O pensamento moderno compartilha com o período da manufatura o seu tempo peculiar, que não é nem o do artesanato nem o da grande indústria: nem ele fala sozinho a sua linguagem exclusiva nem esta linguagem é universalizada totalmente; a condição de necessidade para a burocracia estatal em edificação pariu a Economia Política e, hoje, as consultorias para a administração de capitais não prescindem dos órgãos públicos de gestão de expectativas (substância do conjunto dos investimentos e contratos produtivos), para calcular o giro das máquinas e conseguir crescentemente mais capital no seu balanço de caixa. Os técnicos são necessários, como diria a presidenta Dilma. Eu digo: sem mais Pochmann’s pra criticar as merdas que o PT faz, o PT está condenado a virar um PSDB e, como ele, virar uma oposição sem significância, a reboque do desgaste da coligação – ou coalização – hegemônica. Nada direi da solidariedade de classe entre os do reino animal do espírito e os do reino do espírito animal, pra não ficar triste.}
Diferentemente dessa perspectiva, considera-se que o avanço das ocupações na base da pirâmide social brasileira, a partir do recebimento do salário de base, impõe condições de trabalho e vida melhores para significativa parcela da população que vivia anteriormente na condição de pobreza. Por serem segmentos que pertencem às classes trabalhadoras, constituem oportunidades renovadas de politização classista por parte das instituições que devem representá-las. Esse é o papel que se espera das associações de bairros, sindicatos e partidos políticos compromissados com a classe trabalhadora. {Na conclusão, o mais bonito do texto do Pochmann, que implode a noção de inteligentsia e aponta o que seja e como se faça uma classe; e por onde começar. Eu só diria, em vez de, simplesmente, "associação de bairros": bairros rurais, bairros industriais, bairros comerciais (ou comunicacionais), talvez bairros educacionais, culturais etc., visando à radicalização dos sindicatos e dos partidos políticos.}
{Uma provocação ao PT. Suspeito que as eleições municipais de 2012 não lhe serão favoráveis. Muitos fatores, variáveis etc. serão a seu tempo nomeadas. De preferência, a perda de carisma do Lula, a volta da inflação, a necessidade de preservar a figura da presidenta de processos no STE, o atavismo inato do populacho ou o individualismo fascista das novas classes médias etc. Para o PT, na minha opinião, sua perda relativa de capacidade eleitoreira - nos âmbitos regionais e municipais - segue de perto a renúncia que fez de sua capacidade mobilizatória. Digo isto comparando Santos e Castilho, por onde andei, sem base em dados. Por intuição, portanto, virando a frase do avesso: só causas populares, não-eleitoreiras, elegem candidatos mais ou menos manchados pela perversão da política-partidária; só vai ganhar eleição em município importante onde tiver recomposto suas bases junto aos movimentos populares, concedendo a eles certa autonomia, forjando, ao máximo, aquela aliança orgânica que em toda parte veio a trair "para governar"; no estágio atual, significa fomentar, do zero, de novo, os movimentos populares e sociais. Município importante, como se sabe, é aquele povoado de desigualdades. Igualmente, as eleições nos estados. Se o modelo assistencialista, bolsa-família e bolsa-banco, estiver, de fato, esgotando-se, até a figura do Lula decairá fatalmente. Imagino da seguinte forma a coisa: não adianta inventar militantes do PT pelo PT que a coisa não vai pegar. Em vez disso, talvez funcione: militantes de causas, mormente estilhaçadas, a só ganharem sentido mediante um comissário legal, que lhe dê esperanças de vencê-las. Depois de tanto escândalo de corrupção, ninguém vai votar em candidato, tendo por critério um programa de partido. Simplesmente, os eleitores não sabem do que precisam e quais são seus interesses. Pseudo-organizados, aí sim, vão votar em facilitadores de tal demanda pontual, atendendo à necessidade de defesa de interesses imediatos e particulares, socializado entre os imediatamente iguais; do contrário, votarão num número contra um partido. Portanto, será preciso mistificar o número em favor do partido.} {Na verdade, na verdade, o Dirceu tem dito dessas. É necessário voltar-se ao movimento social. Estou de acordo com ele, precisando, na minha opinião, que a repetição mentirosa do desenvolvimentismo, se for pra seguir o roteiro registrado pelo E. Sader, sugere seguir a vereda sertão adentro pela ressurreição mentirosa dos pequenos movimentos de bairro. Acho que o Pochmann, enviesado,disse o mesmo, querendo além. Que gracinha, uma aliança do PMDB com o PSD tendo à frente do marketing o PSB.}
{Para concluir estes comentários em azul... à revelia dos tecnocratas e da inteligentsia, as contradições sociais estão se aprofundando. O projeto do PT, para além das pessoas de Lula e Dilma, pode levar à superação do estado de coisas atual. Difícil é percorrer este caminho sem cair em auto-ilusão esquerdizante. Daí a necessidade de aprofundar a análise, está claro, lembrando, com Pochmann, que a solução encontra-se no empoderamento da população trabalhadora, a fim de desmistificar o marketing político que, hoje, adentrou até mesmo o Zorra Total. Eu enxergo, aqui e ali, indivíduos que simpatizam e dedicam-se à causa da classe trabalhadora, embora o façam na chave do liberalismo. Será mero diversionismo a defesa, pela Rede Globo, dos índios kaiowá e dos atingidos por Belo Monte? Será mero jogo-de-cena seu interesse, tão espetacularizado, pela retomada dos territórios do tráfico de armas e de drogas nos morros do Rio? Não concorrerá, junto aos cínicos, uma força de oposição, que precisa, ainda, ser esclarecida quanto a seus objetivos e métodos? Uma força que não se pode superestimar mas que, realmente, não se deve ignorar, para o bem e para o mal. Falta, por fim, determinar em que nível dá-se a luta de classes atual. Se a renda da terra, mais uma vez, puxa, associou-se ao lucro sobre o salário urbano, sobre a parte não paga do mais-trabalho capitalista, como proceder para recolocar a luta de classes na sua oposição fundamental, propriamente entre os pólos do capital e do trabalho? }
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