quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Importação afetou diversos setores



Valor Econômico - 26/10/2011

Os setores têxtil e de confecções, de calçados e químico - que não refizeram as projeções - apresentaram maus resultados no acumulado do ano em comparação com o mesmo período do ano passado. Para esses setores, a concorrência dos importados foi particularmente acentuada. O volume de bens trazidos do exterior aumentou 12,6% em têxteis, 50% em confecções, 26% em calçados e 12,8% em produtos químicos, segundo dados da Fundação Centro de Estudos para o Comércio Exterior (Funcex).
Saindo de uma perspectiva de crescimento em janeiro, a Associação Brasileira da Indústria de Calçados (Abicalçados) e a Associação Brasileira de Indústria Química (Abiquim) registraram contração no acumulado até agosto, na comparação com o mesmo período do ano anterior: 11,4% e 4,3%, respectivamente, segundo a pesquisa industrial mensal do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
No caso da Abicalçados, a queda de 13,9% nas exportações neste ano, reflexo da dificuldade em vender o produto para os argentinos, que impuseram licenças não automáticas para a entrada de calçados no país, é outro forte motivo para a contração. Por outro lado, as importações cresceram 43,5% (em valor) no período. No ano passado, o setor tinha registrado aumento de 5% na produção.
Na indústria química, um dos responsáveis pela diminuição da produção industrial foi a queda do preço do gás natural nos Estados Unidos. De acordo com a diretora de economia e estatística da Abiquim, Fátima Coviello Ferreira, o gás é três vezes mais caro no Brasil. Isso fez com que algumas fábricas nos Estados Unidos voltassem a operar e exportar. Por conta também de outros fatores como carga tributária e custos mais altos com logística, o setor tem dificuldades de competir no mercado interno. "A demanda na ponta cresceu 10% até agosto, enquanto as importações aumentaram 36,7%. Isso quer dizer que não estamos conseguindo competir", afirma a economista.
Para Aguinaldo Diniz Filho, presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), este "tem sido um dos piores anos da indústria têxtil e de confecção brasileira nas últimas décadas". Em 2010, o setor cresceu em torno de 15%. O aumento do preço do algodão no mercado internacional, o desaquecimento da demanda interna, a estagnação das exportações e o aumento das importações foram os fatores que fizeram a produção física encolher de janeiro a setembro deste ano, segundo Diniz. Com isso, a previsão é que os investimentos também caiam. "Em 2010, o setor colocou mais de US$ 2 bilhões em máquinas, equipamentos, instalações e capacitação. Agora, as atuais perspectivas seguraram os investimentos", afirma. No acumulado até setembro, a Abit viu a produção do setor encolher 14,3%, segundo dados do IBGE.
Na contramão desses setores vem a indústria automotiva. A Anfavea, entidade que representa as montadoras, aumentou em dois pontos percentuais a previsão de crescimento da produção do setor. O mercado interno e as exportações também surpreenderam positivamente: enquanto a venda de automóveis no mercado interno aumentou 7% no acumulado de janeiro a setembro (contra 5% do previsto do início do ano), a exportação cresceu 4% (contra 3% apontados na previsão inicial).
Ligada ao setor automotivo, a Associação Brasileira da Indústria de Autopeças (Abipeças) adiou as estimativas para a produção no ano devido às incertezas em relação ao câmbio, ao consumo no mercado interno e ao crédito mais restrito para a compra de carros. Enquanto no ano passado o setor registrou crescimento de 14,2%, no início do segundo semestre, os cálculos apontaram aumento de 4,3% no faturamento bruto para 2011.
Uma posição diferente é apresentada pela indústria alimentícia, que caminha em 2011 no mesmo ritmo de 2010. Por enquanto, são mantidas as previsões de crescimento de 5% da produção e de faturamento 7% maior, de acordo com a Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia).
"O mercado interno ainda tem boas condições de compra. No mercado externo, o crescimento acontece devido ao valor das commodities, e não por meio da conquista de novos mercados", afirma Denis Ribeiro, do departamento de economia e estatística da Abia. Assim como a produção, o emprego no setor corresponde às expectativas do início de 2011, com crescimento próximo a 5%.

Previsões frustradas na indústria

Câmbio frustra previsões da indústria no ano
Autor(es): Por Carlos Giffoni e Rodrigo Pedroso | De São Paulo
Valor Econômico - 26/10/2011
http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2011/10/26/previsoes-frustradas-na-industria

O câmbio, o aumento das importações e o crescimento menor que o esperado nos Estados Unidos e na zona do euro frustraram as expectativas da indústria brasileira para 2011. Levantamento feito com 11 associações setoriais mostra que em nove segmentos o ano ficou muito aquém do esperado. No setor de máquinas, a projeção de um crescimento de 10% está agora reduzida a 5,5%, enquanto a já modesta estimativa de um aumento de 4% no setor têxtil se transformou em queda de 14% na produção até agosto, segundo dados do IBGE.

A indústria têxtil, de calçados e vestuário enfrenta forte concorrência de importados. O volume trazido do exterior cresceu 12,6%, 26% e 50%, respectivamente, até setembro. Entre os setores que se salvaram estão o automotivo - único a elevar a previsão feita no fim de 2010 - e o de alimentos.

O ano de 2011 frustrou profundamente as previsões feitas para a indústria na virada do ano. Entre 11 associações industriais consultadas pelo Valor, nove diminuíram suas estimativas de crescimento ou produziram até agosto um volume de mercadorias muito inferior ao planejado. A desvalorização do dólar e o crescimento das importações foram os principais motivos apontados por executivos como "inibidores" da produção nacional. Dois setores bem distintos, o alimentício e o automotivo, foram na contramão, cumprindo e até mesmo superando as expectativas do início do ano.
No ano, a produção industrial acumula aumento de apenas 1,4% na comparação com os primeiros oito meses de 2010, enquanto o volume exportado de manufaturados ficou apenas 3,8% maior e o quantum de produtos importados aumentou de 9,1% (em bens intermediários) até 29% (em bens de consumo) segundo as estatísticas da Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior (Funcex).
A Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee) projetava em janeiro deste ano um crescimento de 13% na produção em 2011. Esse índice já foi revisto duas vezes. Em março, caiu para 12%; e, em junho, para 8%, segundo Luiz Cezar Rochel, gerente econômico da entidade. "O câmbio teve um comportamento muito ruim para o setor. Com o dólar no patamar que chegou, de R$ 1,60, a nossa competitividade foi prejudicada tanto no mercado externo quanto no interno. Mas a população continua consumindo os importados", diz.
As vendas de parte do setor, no entanto, seguem em ritmo forte. Pela pesquisa de comércio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), até agosto, as vendas de eletrodomésticos foram 18% maiores que em igual período do ano passado. Na avaliação de Rochel - que é compartilhada por boa parte dos industriais -, um câmbio favorável para a indústria brasileira estaria na faixa de R$ 2,30. "O dólar valendo R$ 1,80 já é melhor do que o cenário anterior, mas ainda nos traz problemas de concorrência."
A inflação é outro fator que preocupa a Abinee. Segundo sondagem realizada em setembro, os industriais começaram a apontar o aumento dos preços como motivo de preocupação. "A inflação afeta o poder de compra do consumidor", afirma Rochel. "A situação hoje é muito confusa. Nem conseguimos fazer projeções para 2012, mas estamos de olho no comportamento da inflação e a influência da crise internacional no nosso mercado", conclui.
A crise na zona do euro e nos Estados Unidos, por sua vez, ajudou a diminuir as perspectivas de crescimento da Associação Brasileira da Indústria de Máquina e Equipamentos (Abimaq). Depois de registrar aumento de 11% na produção no ano passado, a Abimaq previu um nível parecido para 2011. No entanto, o avanço não deve ser maior que 5,5%, de acordo com o assessor econômico da presidência da associação, Mario Bernardini. "O resultado não será ruim, mas o cenário não é muito animador", diz. O esfriamento das exportações, por causa da retração na economia dos países desenvolvidos, e a diminuição no nível de investimentos da indústria, que reage a uma acomodação do consumo interno, empurraram para baixo as perspectivas do setor. Para o ano que vem, Bernardini descarta uma volta ao nível antigo.
Outro setor que revisou para baixo as expectativas de produção em 2011 é o de móveis. Apesar de o crescimento de 6% ser bem visto pela Associação Brasileira das Indústrias do Mobiliário (Abimóvel), o índice é significativamente menor que os 10% projetados no começo do ano, e isso já é motivo de dor de cabeça para o presidente da associação. "O mercado está muito frio. Temos que melhorar neste último trimestre", diz José Luiz Diaz Fernandez.
As medidas de contenção de crédito adotadas pelo governo são vistas como os principais responsáveis pela revisão nas projeções de crescimento do setor. "O comprador de móvel financia o pagamento e, com menos crédito disponível, ele começa a segurar um possível endividamento", diz Lipel Custódio, diretor da Abimóvel.
O setor de siderurgia no Brasil revisou, de maneira mais moderada, a previsão de crescimento para 2011, passando de 11,4% para 10,5%, o que representa 36,3 milhões de toneladas de aço produzidas. A justificativa do setor aponta para a "acirrada competição das importações" e para o desaquecimento da economia. O dólar desvalorizado e os excedentes de aço no mercado internacional favorecem a importação, segundo o Instituto Aço Brasil.
Desde a crise de 2008, a Associação Brasileira de Papel e Celulose (Bracelpa) evita fazer projeções, mas os números deste ano mostram um forte recuo na produção. Na comparação de janeiro a agosto de 2011 com o mesmo período do ano anterior, a produção de celulose ficou estável e a de papel recuou 0,3%. Para se ter ideia do tamanho da retração, a produção de celulose cresceu 6,4% em 2010, em relação a 2009, e a produção de papel avançou 4,4%.
Os problemas enfrentados pelo setor são, principalmente, dois. "No mercado externo, Europa e Estados Unidos, grandes importadores de celulose do Brasil, estão no centro da atual instabilidade econômica mundial. No mercado interno, o aumento das importações de papel tem diminuído as vendas domésticas", diz Elizabeth de Carvalhaes, presidente da Bracelpa.
O setor, contudo, tem uma posição otimista. Os investimentos previstos para os próximos dez anos chegam a US$ 20 bilhões - e não foram revistos mesmo com os sinais negativos apresentados até agosto. O que ocorre é uma renegociação dos prazos, que são trabalhados sobre os sete anos que o eucalipto leva para crescer, por exemplo. "As empresas estão buscando aumentar a sua produtividade, mas o governo precisa fazer a sua parte e buscar alternativas para o câmbio", afirma a representante da entidade.

Carga pesada

Época - 24/10/2011
http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2011/10/24/carga-pesada
 

O automóvel se tornou o principal instrumento de arrecadação do país. De cada R$ 100 que o governo recolhe em impostos, R$ 6 vêm de carros
MARCELO MOURA, COM FELIPE PONTES, HUMBERTO MAIA JUNIOR E MATHEUS PAGGI
Pouca gente conhece a Terra em tantos detalhes quanto o inglês David Rothschild. Herdeiro de uma das maiores fortunas do mundo, ele vê o planeta pela janela da primeira classe dos aviões e também por meios de transporte alternativos, como a balsa feita de garrafas PET a bordo da qual cruzou o Oceano Pacífico. É dele a frase: "Se um disco voador descer hoje na Terra, os extraterrestres podem achar que a espécie dominante não somos nós, e sim criaturas de quatro rodas feitas de metal". Nessa visão distanciada de mundo, os humanos seriam escravos que alimentam os automóveis quando eles têm sede, dão banho quando estão sujos e curam seus ferimentos quando eles se machucam.
Se um disco voador descer no Brasil, os ETs nem terão dúvida: quem manda aqui é mesmo o carro. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), nos últimos 15 anos a frota de automóveis do país cresceu 15%. Só no ano passado 3,3 milhões de novos automóveis ganharam as ruas, alta de 10,5% em relação ao ano anterior. Quem pode anda de carro. Mas anda mal. Em São Paulo, no horário de pico, a velocidade média é de 8 quilômetros por hora. A pé é mais rápido. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) calcula que, em cidades com mais de 100 mil habitantes, 32% das pessoas gastam pelo menos uma hora no trânsito para trabalhar ou estudar. "Não tenho como usar transporte público para chegar ao trabalho", diz o matemático e engenheiro Francisco Manuel Pires Neto, de 52 anos. "Já tentei deixar o carro em casa, mas é inviável." Ele mora em São Paulo e trabalha em Mogi das Cruzes, cidade vizinha. Gasta 40 minutos por dia dirigindo e R$ 784 por mês. Desse total, cerca de R$ 200 vão para os cofres do governo.
Sim, porque, se Pires Neto depende demais de seu carro, ele não está sozinho. Seu Kia Soul é indispensável também para Dilma Rousseff, a presidente da República. Para ela, para o governador e para o prefeito de sua cidade. A administração dos três depende do dinheiro arrecadado direta e indiretamente pelo carro – mais que de qualquer outro produto ou setor empresarial. Como atividade, a indústria automobilística e suas ramificações empatam com o trilionário sistema financeiro no recolhimento de impostos federais. Se somarmos taxas, tributos, multas, contribuições e toda sorte de artifícios usados pelo governo de Estados e municípios para tirar dinheiro da manada automotiva, o carro é – de longe – a maior unidade arrecadatória da República, de acordo com um levantamento exclusivo realizado por ÉPOCA.
Pendurado em seu automóvel – e nos mais de 25 milhões que estão em circulação no país –, o governo federal recolheu em 2011, de janeiro a agosto deste ano, R$ 32 bilhões, ou 22% da arrecadação dos principais tributos federais. Para os Estados, o automóvel rendeu R$ 30 bilhões até agosto, arrecadados com o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e com o Imposto sobre Consumo de Mercadorias e Serviços (ICMS), que incide sobre todas as fases da vida do carro: fabricação, compra, licenciamento, reparo e abastecimento. Em 2009, o ICMS da venda de combustíveis representou, sozinho, 40% da arrecadação do Estado do Amapá. Parte do dinheiro é repassada às prefeituras – que não recolhem imposto com o carro, mas também ganharam mais de R$ 600 milhões com multas. Somando tudo ao longo deste ano, a projeção é que os carros rendam ao Estado brasileiro astronômicos R$ 81 bilhões, ou algo como 2% do Produto Interno Bruto brasileiro. Ao todo, de cada R$ 100 recolhidos em impostos no país, um único produto – o automóvel – responde por aproximadamente R$ 6. "O carro é a prima-dona da arrecadação", afirma Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal.
Quando você compra um Toyota Corolla por R$ 78 mil, o governo recolhe 31% em tributos. Na Alemanha, o carro novo paga em média 16% e, nos Estados Unidos, 6%. "O Brasil cobra impostos em cascata e isso encarece muito produtos de fabricação complexa, como o carro", afirma João Eloi Olenike, presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT). Ao encher o tanque do carro com gasolina, o brasileiro paga 53% da despesa em impostos. Dilma e seus colegas podem não entender de molas e parafusos, mas são eles que recebem 32% do que se paga à oficina mecânica. Mesmo se você decidir negar a natureza do automóvel e deixá-lo imóvel na garagem de casa, ainda assim será obrigado a pagar o IPVA, em torno de 4%.
Pela Constituição, o dinheiro dos impostos recolhidos com os automóveis não é vinculado a nenhuma aplicação específica. Vira dinheiro livre, aguardado com ansiedade pelos governadores. A ponto de eles terem antecipado para o primeiro trimestre a cobrança do licenciamento dos carros usados, que costumava ser escalonada ao longo do ano. Com esse artifício, adotado a partir da década passada, os Estados reforçaram o caixa no período em que a atividade econômica é mais fraca. A classificação dos carros com motor flex também atendeu à lógica da maior arrecadação. Em São Paulo, esses modelos pagam IPVA de 4%, como os carros a gasolina (que poluem mais), apesar de consumirem principalmente álcool. Se o imposto do flex fosse igualado ao do carro a álcool (3%), o Estado perderia receita. Calculado sobre o valor de mercado do carro a cada ano, o IPVA premia os modelos antigos – aqueles que, em tese, poluem mais o ar, quebram no meio da rua com maior frequência e oferecem menos proteção em acidentes. Quanto mais velho o automóvel, menor é seu valor de mercado e, portanto, seu tributo. Faz sentido para o caixa. Nenhum para o planeta.
Embora isso tudo faça parte do cotidiano brasileiro, a relação do Estado com o automóvel não é a mesma em toda parte. Outros países usam os impostos para incentivar a indústria e os motoristas a diminuir o impacto negativo do automóvel, não apenas para encher o cofre do governo. Na Europa, o licenciamento anual é proporcional à poluição produzida por carro. As montadoras se empenham em desenvolver motores mais limpos, porque o público terá interesse financeiro em comprá-los. No Japão, os carros que ocupam mais espaço no asfalto pagam mais imposto. Cingapura regula a circulação do automóvel. Adotou o pedágio urbano no centro da capital em 1975. O número de carros caiu 45%. O de acidentes de trânsito, 25%. O sucesso inspirou experiências semelhantes na Noruega e no Reino Unido. Para combater o engarrafamento em Pequim, na China, a administração local estrangulou o registro de carros novos na cidade a 20 mil unidades por mês, um terço da demanda do mercado. Montadoras reclamaram da queda nas vendas provocada pela restrição, mas o governo chinês não cedeu. "No Brasil, o imposto sobre o carro só tem a finalidade de arrecadar", diz a economista Lidia Goldenstein, especialista em política industrial. "Temos um Estado ineficiente que precisa do imposto fácil sobre os automóveis."
O casamento de interesses entre montadoras e o Estado brasileiro começou em 1956 – um enlace no qual o dote foi pago pelo governo, num bolo de noiva chamado Grupo Executivo da Indústria Automobilística (Geia). O grupo foi formado para substituir as importações de produtos de alto valor, que desequilibravam nossa balança comercial. Naquele ano, o país tinha 811 mil carros, todos importados. Gastava-se mais com a importação deles do que com petróleo ou trigo. O Geia proibiu a importação de carros e concedeu créditos e isenções às montadoras. "A política de incentivos para atrair empresas não foi muito diferente da adotada em países como México e Argentina", diz José Roberto Ferro, presidente da consultoria Lean Institute do Brasil. "Só os Estados Unidos, que inventaram as montadoras, abriram mão de regular o mercado no início." O Brasil atraiu 11 montadoras entre 1956 e 1960. Atrás delas, surgiram fábricas de peças, oficinas e concessionárias. "Antes do governo Kubitschek, o país era essencialmente agrário", diz Luiz Carlos Mello, ex-presidente da Ford. Graças ao automóvel, o Brasil mudou. Protegida pelo mercado fechado, a indústria nacional cresceu nos anos 1970. Na década seguinte, Estado e montadoras amargaram estagnação. Entre 1980 e 1981, as fábricas demitiram 20 mil pessoas. Os protestos na porta das montadoras de Santo André, São Bernardo e São Caetano – o ABC paulista – forjaram o movimento sindical brasileiro. Dali surgiu o Partido dos Trabalhadores (PT), em torno da figura do líder operário Luiz Inácio Lula da Silva. A inércia do mercado automotivo dos anos 1980 foi quebrada, novamente, a golpe de caneta. Em 1990, o presidente Fernando Collor de Mello chamou os carros nacionais de "carroças" e reabriu o mercado às importações. A concorrência estrangeira e a crise econômica do congelamento das cadernetas de poupança derrubaram as vendas das montadoras locais em 10%. Para recuperar mercado e crescer, elas foram favorecidas por uma... lei de incentivo, que baixou o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e inaugurou a era do carro popular.
No fim de 2008, diante da crise econômica mundial provocada pela quebra de bancos americanos, o presidente Lula reduziu novamente o IPI dos carros. "O governo foi muito hábil", diz João Sabóia, professor de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "A indústria bateu recorde de vendas e, no segundo semestre de 2009, o desemprego já tinha voltado aos níveis do ano anterior." Isso acontece porque o carro tem uma capacidade quase única de irradiar riquezas. Certos setores, como a agricultura, até geram mais empregos que as montadoras. Mas não passam a contratar mais pessoas diante de um pequeno estímulo nas vendas. "O setor automotivo é fundamental para a economia porque as montadoras pagam acima da média do país e porque, atrás delas, há atividades com alta geração de empregos, como fábricas de autopeças e rede de oficinas", diz Fabio Freitas, pesquisador do grupo de Indústria e Produtividade da UFRJ. De acordo com a Anfavea, o setor gera 1,5 milhão de empregos diretos e indiretos – o equivalente a 3,4% dos postos de emprego formal do país.
Mais do que os empregos, porém, é a polpuda fatia dos impostos recolhidos com os carros que explica a deferência histórica do Estado com o setor automobilístico. O governo brasileiro trata como patrimônio os postos de trabalho criados pelas montadoras que se instalaram no Brasil e as fatias de mercado dessas empresas, porque são essas fatias que alimentam o recolhimento de impostos. Recentemente, a defesa agressiva desse patrimônio ficou evidente quando, em setembro, o governo tentou – para a felicidade das montadoras instaladas no país – aumentar em 30 pontos porcentuais o IPI que incide em carros importados de fora da América Latina (muitos dos carros que circulam no Brasil vêm da Argentina e do México). A medida foi suspensa na última quinta-feira pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que considerou obrigatório o prazo de 90 dias para a medida vigorar.
No texto da lei, o governo criou exceções, liberando desse novo nível de tributação os automóveis em cuja construção tenham sido usados 65% de peças feitas no Mercosul ou que cumpram no Brasil ao menos seis de 11 etapas de fabricação. O principal alvo da medida eram os automóveis coreanos e sobretudo os chineses, que desde o ano passado vêm ganhando participação rapidamente no mercado brasileiro, graças a uma combinação impressionante de preços baixos e tecnologia. De janeiro a agosto, foram emplacados no país mais de 40 mil carros chineses. O consumidor gosta de ter mais opções e bons preços. Uma invasão chinesa poderia, porém, resultar em perda de empregos – e arrecadação menor.
A história recente ensina que contrariar as montadoras é politicamente arriscado. Mesmo se as fábricas não pressionassem o governo, seu ponto de vista já está enraizado na cultura do público e na estrutura política do país. Quando assumiu o governo do Rio Grande do Sul, em 1999, Olívio Dutra, do PT, quis rediscutir os incentivos à implantação de fábricas da Ford e da General Motors no Estado, acertada na administração anterior. A Ford não fechou acordo e foi para a Bahia. Desgastado, Dutra nem sequer disputou a própria reeleição. "O rompimento com a Ford teve impacto mesmo dentro do PT, mas não me arrependo", diz ele. "Os sindicatos que pedem isenção de impostos para gerar empregos não estão vendo a floresta, estão vendo apenas uma árvore." Desde que o PT assumiu a Presidência, em 2003, o ponto de vista dos sindicatos tornou-se oficial. A base sindical do governo luta por suas vagas, as montadoras defendem seu mercado – e o governo protege sua arrecadação. Essa aliança faz do carro brasileiro uma entidade quase intocável.
O carro como o conhecemos – uma máquina com motor a combustão, de propriedade privada, usada no deslocamento diário – está em crise no mundo inteiro. Seus benefícios são cada vez menores. Ele é um grande gerador de empregos, mas essa tendência é de queda. Com o aumento de produtividade, a tarefa que era feita por nove pessoas, em 1960, agora depende de apenas uma (leia o quadro abaixo). O congestionamento nas grandes cidades cobra um preço alto. Parados no trânsito, funcionários qualificados, que poderiam gerar riqueza em seu lugar de trabalho, são reduzidos a figurantes de uma lenta procissão. Segundo um estudo do Citigroup, o Brasil desperdiça 5% da produtividade de sua economia com engarrafamentos, ou algo como US$ 30 milhões.
ECONOMIA PARADA
Congestionamento em São Paulo. Um estudo afirma que o Brasil desperdiça US$ 30 milhões com engarrafamentos por ano (Foto: Mastrangelo Reino/Folhapress)
Os gastos para abrir espaço urbano para a manada de animais de quatro rodas não param de crescer. Só o Estado de São Paulo está investindo R$ 9 bilhões na construção de um Rodoanel na capital e em intervenções em avenidas – enquanto as obras do Metrô em 2010 consumiram R$ 5,5 bilhões. Sem contar o impacto ambiental e o prejuízo com acidentes de trânsito. Em 2010, morreram nas estradas federais 8.516 pessoas – o dobro das mortes americanas na Guerra do Iraque desde 2003. Em 2010, as internações por acidentes de trânsito custaram ao SUS R$ 187 milhões. "São Paulo perde cerca de US$ 1,5 bilhão por ano com internações e mortes causadas pelo ar poluído", diz o patologista Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da USP.
Em outras palavras, o carro parece estar pegando de volta toda a receita que gera para o governo. Um impasse desse tamanho exige uma ação do Estado. Mas o Estado brasileiro ainda vê o automóvel como há 50 anos. Depende dele de forma excessiva. "O consumo de carros é saudável para a economia, mas as pessoas deveriam ter alternativas de transporte e incentivo financeiro para deixá-los em casa", diz o ambientalista Fabio Feldmann. Assim poderíamos nos dedicar aos carros por vontade própria. Não por escravidão.

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