terça-feira, 25 de outubro de 2011

Visão do campo e campo de visão


Autor(es): Marcelo Côrtes Neri
Valor Econômico - 25/10/2011
 

O crescimento médio tupiniquim dos últimos anos esteve longe de ser um grande espetáculo do crescimento. Se apontarmos o binóculo para a plateia: quem se sentou na primeira fila; e quem perdeu o show das rendas crescentes? Tenho argumentado neste espaço que os trabalhadores com crescimento acima da média no Brasil incluem os menos escolarizados de setores como serviços domésticos, construção e agricultura.
Tendência contrastante com a de países desenvolvidos e a dos demais Brics, onde a desigualdade cresce a olhos vistos. Mais do que o país do futuro entrando no novo milênio, o Brasil, último país do mundo ocidental a abolir a escravatura, começa a se libertar da herança escravagista.
Casa Grande e Senzala são visões essencialmente rurais. Traço aqui a partir de projeto para o Instituto Inter-Americano para Cooperação da Agricultura (IICA), um quadro geral das principais transformações recentes na velha/nova ruralidade brasileira. Colocamos as trajetórias de renda rural lado a lado com as do país. Depois exploramos a riqueza de indicadores propiciados pela PNAD/IBGE que permitem incorporar ao nosso campo de visão os detalhes das mudanças trabalhistas rurais.
Em 2009, eram 19 milhões de ocupados no campo; 74,2% da população rural. Em 2003, havia 20,1 milhões de trabalhadores rurais; taxa de ocupação de 77,4%. No país houve movimento inverso, a taxa de ocupação sobe de 64,7% para 67,2%.
Uma primeira explicação para discrepância de movimentos da quantidade de trabalho observada está nas diferenças de crescimento do PIB dos dois universos. A agropecuária cresceu em termos reais per capita 40,4% de 1995 a 2010 contra 29,1% do país. Agora entre 2003 e 2009 cresce apenas 6,6% contra 17,3% do país. Ou seja, a economia agrícola cresceu menos.
A queda da taxa de ocupação no campo, não é acompanhada pelo PIB agropecuário, e menos ainda pelo PIB. O descasamento é mais pronunciado em épocas de boom nacional como no período logo após a implementação do plano Real e na retomada econômica pós-2004. Há comportamento contracíclico do emprego rural. Uma possibilidade é a queda de ocupações precárias da agricultura, puxada pela expansão de oportunidades em outros setores e/ou de transferências públicas. Senão vejamos: Cai a taxa de participação no mercado de trabalho rural (-0,53% ao ano) e a ocupação na população economicamente ativa fica estável. Ou seja, há uma retração da oferta de trabalho do campo. Ambas sobem no conjunto do país.
Apesar dos efeitos ocupacionais contracionistas mencionados acima, a renda individual cresce um pouco mais no campo, 4,3%, contra 3,9% do Brasil. Consistentemente, com melhoria da qualidade do trabalho, leia-se menos precário ou indecente. Houve aumento de produtividade do trabalho no campo medida pelo salário hora que cresce 3,4% ao ano similar ao do país. A jornada de trabalho cai mais no campo.
A peça central faltante na análise é a renda de transferências públicas que cresceu mais no campo. Começamos pela população de 15 a 65 anos de idade para fechar o quebra-cabeças de idade ativa iniciado acima. A renda de programas sociais e de aposentadorias cai 0,24% na totalidade do país e sobe 0,9% ao ano no campo, o que pode levar a aumento de salário de reserva.
É preciso notar que a taxa de ocupação hoje no campo ainda é maior para todas as faixas etárias, sendo maior a distância nas idades mais avançadas. Naqueles com mais de 60 anos, a taxa de ocupação é 67,1% na área rural e 44,1% no país o que em si é um indício da precariedade do campo. Houve queda maior da participação trabalhista de crianças até 15 anos e de idosos com mais de 60 anos o que em si está alinhada com a tese de redução de precariedade trabalhista rural. Nesses extremos etários a renda não trabalhista cresce 3,7% e 6,7% respectivamente, contra 1,49% de todos os grupos etários rurais.
Olhando no agregado, a parcela da renda de programas sociais e aposentadorias rurais sobe de 27,3% para 33,5% entre 2003 e 2009 e fica estável no âmbito nacional em torno de 23,5%. Em ambos universos essa porcentagem era cerca 18% em 1992.
Os módulos rurais da PNAD permitem enxergar detalhes da precariedade trabalhista no período 2003 a 2009. A proporção de ocupados que moram no mesmo terreno do estabelecimento em que trabalham é 48,5% no último ano, percentual inferior ao 54,8% em 2003. A proporção de moradores da área rural que exerceram algum tipo de atividade de subsistência (cultivo, pesca ou criação de animais) destinada à alimentação do próprio domicílio teve queda acumulada de 6,1% em 2003 para 5,1% em 2009.
Em 2003, cerca de 17,2% dos empregados recebiam de seu empregador alguma área para produção particular, passando para 15,33% em 2009. O percentual de empregados que tinham alguma parceria com o empregador caiu a metade em 2009, 3,09% do observado em 2009. A taxa de sindicalização passa de 21,9% para 23,8% entre 2003 e 2009. Era 19,3% em 2001 e houve redução no último ano.
Todos indicadores apontam maior profissionalização do emprego rural. Antes de cantar vitória do agronegócio, da agricultura familiar e/ou das transferências sociais não perca o próximo capítulo.
Marcelo Côrtes Neri, economista-chefe do Centro de Políticas Sociais e professor da EPGE, Fundação Getulio Vargas. Autor dos livros "Ensaios Sociais", "Cobertura Previdenciária: Diagnóstico e Propostas" e "Microcrédito, o Mistério Nordestino e o Grammen brasileiro".

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