Por Eduardo Sales de Lima, do Brasil de Fato
A Fiesp tem razão quando diz que o preço da luz é um “roubo” no Brasil. Mas quem pressionou pela implementação desse modelo foram seus próprios filiados, o próprio setor privado.
“Eles disseram que se privatizasse o setor melhoraria a qualidade do sistema elétrico brasileiro e o resultado foi o contrário: o preço aumentou e diminuiu a qualidade do serviço”, afirma Gilberto Cervinski, coordenador do MAB.
“Antes era monopólio estatal, agora existem os negócios da geração, transmissão e distribuição”, destaca Cervinski. De acordo com ele, as atuais concessões em vencimento, sobretudo na geração e na transmissão, são praticamente todas de controle estatal, como as federais Chesf, Furnas.
Com a reforma (privatização) do setor, realizada ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, em meados dos anos 1990, foi instituído um modelo de competição em que o preço se define pelas forças de mercado, e criou-se o sistema tarifário por incentivo. A nova estrutura permaneceu no governo Lula e impossibilita que a conta de luz reflita os baixos custos da geração.
Conforme o atual modelo cobram-se tarifas internacionais para os trabalhadores, que são os consumidores cativos; e o fornecimento da energia para os grandes consumidores, os “livres”, é bem mais barato. O consumidor livre paga, em média, R$ 100 o Mw/h. Já os cativos, formados pela pequena e média indústria, pelo pequeno e médio comércio e pelas residências, estão pagando R$ 308 Mw/h. “Ou seja, três vezes mais que os livres”, critica Cervinski.
Antes de 1995, o antigo modelo energético estabelecia o controle público das tarifas, definidas pelo custo de produção real, mais uma taxa de retorno do capital. “Essa taxa de retorno (taxa de lucro), significava um futuro percentual de investimento para o setor. Ou seja, o lucro das estatais transformava-se em melhoras no sistema de geração, por exemplo”, explica Cervinski.
A partir da implementação do modelo privatizado, adotou-se o sistema por incentivo, com preços internacionalizados. “Primeiro, privatizou-se praticamente tudo da distribuição (empresas que vendem a energia na ponta, para os consumidores finais); a não ser algumas que davam prejuízo, como as do Acre e Rondônia, que são da Eletrobrás, mas que estão em disputa hoje também”, lembra o coordenador do MAB.
Mas por que o protagonismo do setor de distribuição no contexto da privatização? Segundo Cervinski, as geradoras continuaram vendendo a energia a um preço determinado, mas a tarifa ao consumidor final foi elevada a preços internacionais. A diferença ficou com as distribuidoras, ou seja, com a iniciativa privada.
“Alto custo”
Mesmo tendo em conta que consumidor livre paga bem menos que o residencial, o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, afirma ao Brasil de Fato que se preocupa com o “alto custo da energia”, pois compromete a competitividade do país nos mercados interno e externo”. “O preço da energia também tem contribuído para a transferência de negócios para países onde os valores do insumo [energia elétrica] são mais atrativos”, destaca.
“A Fiesp reclama do preço de energia, mas na verdade, os empresários hoje podem escolher onde comprar energia. E podem comprar nesse mercado, que oscila, mas muitas vezes a energia é bem mais barata do que o que nós, consumidores, pagamos”, critica Luiz Pereira, presidente do Instituto Ilumina.
“Bolsa”
Segundo Peireira, há muita gente ganhando dinheiro na área, os chamados agentes, empresas que se dedicam só a comercializar energia elétrica. “Algumas distribuidoras fazem isso”, destaca.
Essas empresas, segundo ele, estão diretamente ligadas ao que ele denomina ‘grande capital’, em que estão inseridos os bancos estrangeiros.
Ainda de acordo com o presidente do Instituto Ilumina, a Aneel, que deveria regular o setor tendo em vista o bem-estar do consumidor, é somente mais um órgão que representa esses agentes. “Seus diretores são indicados por quem? Por esses mesmos agentes”, lembra.
Por essas e por outras que, de acordo com Carlos Kirchner, consultor em Energia e diretor do Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo (Seesp), a Fiesp está contando somente uma parte da história. “O [Paulo] Skaf representa as indústrias, não os consumidores; ele é da Fiesp”, afirma Kirchner.
Falta de Planejamento
Na opinião de Luiz Pereira, presidente do Instituto Ilumina, a gestão do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso implementou mudanças “grandes” no setor elétrico. Entretanto a que pesou mais, segundo ele, foi a desestruturação do planejamento, então coordenado pela Eletrobrás.
“Se você trabalhava para determinada empresa de energia elétrica, era solicitado a trabalhar durante algum tempo na área de planejamento coordenado pela Eletrobrás. Isso funcionou durante muitos anos”, lembra Pereira.
Segundo ele, isso foi um dos principais motivos do apagão de 2001. “Uma das causas foi a falta de investimento, mas somou-se a isso a falta de coordenação entre os reservatórios, tudo por falta de planejamento”, aponta. Entretanto, esse modelo do setor energético permaneceu com Lula e agora, com Dilma. “É praticamente o mesmo modelo mercantil do governo FHC, porém com planejamento. Ao menos deixou-se de privatizar as empresas federais”, conclui.
Privatizar é o “preço justo”?
Por Eduardo Sales de Lima, do Brasil de Fato
Campanha da Fiesp pelo “preço justo” da conta de luz traveste o desejo de privatização do setor energético
São 112 concessões de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica. Até o fim deste ano o governo federal terá de optar: prorrogação ou leilão. A Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) pressiona pelas licitações e lança a campanha “Energia a preço justo”. Especialistas consideram o movimento da indústria um “golpe” que tem o objetivo de privatizar o setor energético brasileiro por completo.
O conjunto de concessões envolve 28% da capacidade de geração, 82% da malha atual de transmissão e 40% da distribuição de energia do país. Os contratos que findaram em meados dos anos 1990 foram prorrogados por mais 20 anos. Portanto, a partir de 2015 começam a vencer, mas é neste ano que a decisão sobre as concessões será tomada. Dentro do governo federal, o consenso é renová-las.
Mas a campanha “Energia a preço justo”, lançada pela Fiesp, pressiona pela realização de leilões públicos de todos os ativos. A entidade argumenta que o leilão público é a melhor maneira para o país encontrar o real valor dos serviços públicos de energia (geração, transmissão e distribuição).
Para alguns analistas e movimentos sociais, contudo, falta contar a outra parte da história. “O que está em disputa são, sobretudo, as hidrelétricas antigas, a geração. A forma de defender que é preciso privatizar é dizer que deve haver novos leilões que beneficiariam a sociedade”, aponta Gilberto Cervinski, coordenador do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
Dados do MAB revelam que o que está em disputa é algo que envolve um negócio de R$ 30,6 bi por ano, sendo R$ 9 bi referentes a apropriação pelas geradoras; R$ 8 bi pelas transmissoras e R$ 13,6 bi pelas distribuidoras. As companhias de geração em final de concessão estão localizadas nas regiões Sul e Sudeste, e nos Estados da Bahia e Sergipe. As principais empresas são Chesf, Furnas, Cesp, Cemig, CEEE e Copel. Quanto à transmissão, a maior parcela também pertence a empresas estatais federais (Furnas, Chesf, Eletronorte e Eletrosul) e estaduais Cemig, Copel, CEEE, Celg).
As empresas de distribuição em que as concessões estão vencendo são formadas por oito estatais estaduais, entre elas Copel, Cemig, Celesc, além de seis ex-concessionárias estaduais das Regiões
Norte e Nordeste que foram federalizadas, passando ao controle do Grupo Eletrobrás. Existem ainda duas pequenas estatais municipais e 22 pequenas concessionárias privadas espalhadas pelos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Goiás, Maranhão e Espírito Santo.
“Preço justo”
A Fiesp sustenta que a abertura de novas licitações e a realização de leilõespara o setor elétrico deverão derrubar o valor médio da energia de R$ 90 para cerca de R$ 20 o MWh (megawatthora) e isso se refletirá diretamente na tarifa aos consumidores. “O Brasil tem um dos menores custos de geração de energia elétrica e paga uma das tarifas mais caras do mundo. Com o vencimento das concessões a partir de 2015, temos uma excelente oportunidade de reduzir o custo desse insumo para toda a sociedade”, defendeu o presidente Paulo Skaf ao Brasil de Fato.
Skaf, que foi candidato ao governo de São Paulo e almeja disputar a prefeitura pelo PMDB, acredita que a mobilização pública pode demonstrar ao governo federal o desejo da população de ver respeitadas a legislação e a Constituição Federal, [tendo em vista que a legislação atual prevê que se realize licitação]. “Além disso, a campanha quer mostrar que há tempo suficiente para a realização de novas licitações para essas concessões. Portanto, a hora é agora”, destaca.
O presidente da Fiesp pondera ainda que o estudo realizado pela entidade demonstra que com a realização de novos leilões, a economia para os consumidores poderá chegar a R$ 918 bilhões em 30 anos, ou R$ 30 bilhões por ano. “Com esse dinheiro, seria possível a manutenção de mais dois programas sociais do tamanho do Bolsa Família, por exemplo”, salienta.
Privatizar
Gilberto Cervinski, do MAB, considera “demagógica” tal defesa. Ele não tem dúvidas de que se o preço da tarifa de energia fosse reduzida de R$ 90,00 para os R$ 20,00, algo em torno de R$ 7,5 bilhões, seriam transferidos à iniciativa privada, através da apropriação das distribuidoras, “porque a Fiesp não propõe a alteração do sistema tarifário por incentivo”, pondera.
A entidade patronal aponta que os 23.000 MW em jogo e durante 35 anos, resultariam em R$ 641 bilhões, ao preço de R$ 90,98/MWh. Enquanto que se for licitado a R$ 20,00, como a Fiesp propõe, a soma seria de “apenas” R$ 145,9 bi na conta do consumidor.
Porém, Gilberto Cervinski discorda desses números. O especialista ainda aponta erro grave nos cálculos. “Fizeram um cálculo vergonhoso, ou foram ignorantes ou fizeram por má fé. Eles fizeram pelo cálculo da energia potencial, e é errado. O cálculo é feito pela energia firme (geralmente em torno de 55% da potência instalada)”, critica.
“A Fiesp assumiu o protagonismo das empresas privadas. Você acha que ela quer diminuir a taxa de lucro das distribuidoras [e diminuir o preço da tarifa final]? Quem são os donos das distribuidoras? Camargo Correa, Votorantim, empresas integrantes da entidade. E agora eles dizem que têm que cumprir a lei?”, critica Cervinski.
Ele explica ainda que, ao defender uma tarifa a R$ 20,00/MWh, a Fiesp baseia-se num “sistema tarifário estatal”, que leva em conta o custo de produção real, porém mesclado no “sistema por incentivo”, organizado sob os preceitos da livre concorrência, da competição e na “modicidade tarifária”, que é internacionalizada, estabelecidos a partir de 1995.
De qualquer forma, o atual modelo tarifário energético não permite que a conta de luz reflita os baixos custos da geração. Luiz Pereira, presidente do Instituto Ilumina, aponta que, ao diminuir somente o custo da geração [um dos principais argumentos da Fiesp], atua-se somente numa das parcelas da “conta de luz”. “Não é isso que vai fazer mudar. O que pesa na conta final da energia é o modelo e os tributos”, destaca Pereira.
Parcelas
O preço final de uma tarifa de energia elétrica é a soma de várias parcelas. Uma das parcelas é chamada valor da energia, ou seja, da geração. Soma-se ao valor da transmissão, da distribuição e, depois, aos encargos e aos tributos.
“Na minha conta da Light (residente no Rio de Janeiro), por exemplo, observo que o preço mais elevado é o valor da energia da geração. Em seguida, estão o valor da distribuição e depois os tributos e os encargos, que oneram muito hoje. O que a gente paga hoje de energia elétrica não está ligado diretamente só ao custo da energia elétrica (geração)”, explica Luiz Pereira.
Apropriação
Paulo Skaf vê de outra forma. O presidente da Fiesp defende que a partir de 1995, com a mudança no regime de tarifa pelo custo, foi estabelecido um “ambiente competitivo que tem favorecido a modicidade tarifária”, o que pôde, segundo ele, ser demonstrado nos últimos leilões em que foi adotado o critério da menor tarifa. “Os resultados desses leilões apresentaram significativos deságios, favorecendo o consumidor”, pontua.
O fato é que se as indústrias não conseguirem privatizar as estatais, tentarão fazer com que elas forneçam energia ao preço mais barato possível para as distribuidoras de energia. É o que pensa o coordenador do MAB. “Essa campanha serve para, no mínimo, fazer com que as empresas públicas repassem a energia ao preço mais barato possível para que haja transferência de valor”, explica Cervinski.
“Você acha que vão diminuir o preço da tarifa final [caso se barateie o preço da geração]? E se diminuir nos primeiros meses, você acha que no ano que vem eles não vão burlar os dados? Sim, porque os dados que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) analisa para conceder aumento para as distribuidoras são fornecidos pelas próprias empresas. Como é que ela tem condições de dizer não? Ou seja, elas vão se apropriar no final das contas”, prevê Cervinski.
Não bastassem os entraves citados que impedem o barateamento do preço da tarifa final, ele acaba sendo refém de uma “estrutura onerosa” do modelo energético. Ou seja, mesmo que uma indústria vença um suposto leilão, o consumidor residencial ainda será obrigado a arcar com a manutenção de uma termelétrica e iluminação pública, por exemplo; são gastos embutidos na conta de luz. “Não há nada que garanta que quem ganhe o leilão contribuirá com um bom serviço público final e sem onerar o consumidor cativo”, afirma Carlos Kirchner, diretor da Seesp.
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