domingo, 22 de janeiro de 2012

Dinheiro para saúde de índios abastece fraudes

Autor(es): Roberto Maltchik
O Globo - 22/01/2012
 

Em apenas quatro investigações, concluídas nos últimos dois anos, prejuízo aos cofres públicos chega a R$13,6 milhões

BRASÍLIA. Documentos e depoimentos obtidos pelo GLOBO apontam para a existência de esquemas de desvio de recursos da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e do Ministério da Saúde em pelo menos nove dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis) distribuídos de Norte a Sul do Brasil, além de ONGs que receberam dinheiro para ações de saúde indígena. As fraudes estão concentradas no serviço de abastecimento de combustível de barcos e veículos, compra de alimentos e pagamento por horas de voo para o deslocamento de pacientes, médicos e insumos. Apenas o contrato nacional de combustível, firmado entre a Funasa e a Ticket Serviços S/A, pagou, nos últimos 4 anos, R$142,5 milhões nos 26 estados e no Distrito Federal.
As fraudes, de acordo com farta documentação elaborada por fiscais e gestores da Saúde ao longo de 2011, teriam beneficiado servidores públicos em postos de chefia, empresários e lideranças indígenas, que recebiam sua "cota de combustível" como "cala boca" preventivo ao péssimo atendimento de saúde, relatam procuradores da República e agentes federais com atuação na Amazônia Legal.
Enquanto o dinheiro escorre no ralo da corrupção, o Dsei Javarí, na segunda maior área indígena no país, com 4.915 moradores, contabilizou, entre 2010 e 2011, 255 nascidos vivos e 33 mortes por desnutrição aguda, diarreia e pneumonia de crianças entre 1 e 5 anos - 1,2 mortes para cada dez nascimentos.
As irregularidades prosperaram no uso do Ticket Car, cartão de pagamento de combustível para veículos terrestres e fluviais. Em Manaus, por exemplo, os cartões dos servidores públicos caíram nas mãos de intermediários, que administram postos que atendem à Funasa. Em 05 de abril de 2011, por meio do memorando 017/2011, um fiscal de contrato relatou a existência de veículos parados, no Dsei de Manaus, mas que continuavam "rodando" e sendo abastecidos de maneira fraudulenta.
Ofícios que autorizam pagamentos são recolhidos
Foi o estopim para a descoberta de 53 cartões de abastecimento, que ficavam sob controle do Posto Sideral, em Manaus. O estabelecimento pagava créditos de combustível para contas bancárias indicadas pelos chefes dos distritos indígenas, conforme admitiu ao GLOBO o encarregado administrativo do posto, Landy Rodrigues Lima. Dinheiro que, em tese, servia para subsidiar o abastecimento de veículos no interior do estado.
--- Eles deixavam (os cartões) aqui e, no fim de semana, buscavam. Ninguém entendia o porquê. Eu só fazia passar o que eles pediam para passar. A gente fazia a intermediação --- diz Lima, que não sabe quanto o posto ganhava na intermediação.
O MPF descobriu que os chefes do Dsei emitiam ofícios para liberar os créditos de combustível. Porém, no final do mês, funcionários do distrito recolhiam nos postos os ofícios de forma a sumir com as provas, informa um procurador da República. Técnicos do Ministério da Saúde, ouvidos pelo GLOBO, detectaram procedimento semelhantes nos Dseis Tefé e Parintins. Um servidor, que pediu anonimato, conta que o dinheiro também beneficia lideranças indígenas. É a cota de combustível.
Os desvios agora revelados reforçam um histórico de fraudes no atendimento de saúde indígena. Apenas quatro investigações federais, concluídas nos últimos dois anos no Amapá, Rondônia e Roraima, apontam prejuízo de R$13,6 milhões. São desvios na compra de alimentos, pagamentos de horas de voo, e serviços sem execução comprovada.
Foram detectados indícios de desvios em combustíveis, uso fraudulento de cartão de abastecimento e pagamentos irregulares por serviços nos Dseis Médio Rio Solimões e Afluentes; Araguaia; Minas Gerais/Espírito Santo; Cuiabá; Xavante/MT; e Médio Rio Purus. A documentação seguiu para Brasília. O coordenador nacional dos fóruns de conselhos distritais de saúde indígena (Condisis), Jorge Marubo, confirma as irregularidades e diz que há grande resistência - inclusive entre lideranças indígenas - para estancar a sangria.
- Para romper esse sistema de desvio de recursos é muito difícil. Alguns indígenas se envolvem nisso, querem manter o sistema da Funasa. Há muita dificuldade para a organizar a mudança - diz Marubo, que vive no Vale da Javarí, região que, segundo ele, tem o pior atendimento de saúde indígena do Brasil.

Funasa diz que contratos foram fiscalizados

O Globo - 22/01/2012
http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2012/1/22/funasa-diz-que-contratos-foram-fiscalizados
 

Entre 2009 e 2011, 22 processos concluídos
BRASÍLIA. A Funasa não se manifestou sobre a qualidade do controle sobre a aplicação dos recursos destinados à compra de alimentos e com gastos do Ticket Car, utilizado para o pagamento do consumo de combustível. A fundação limitou-se a informar que "é importante destacar que o processo de transição administrativa dos contratos repassados à Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) foi alvo de acompanhamento e fiscalização de diferentes órgãos de controle interno e externo".
Ainda de acordo com a Funasa, apenas no Amazonas foram instaurados 20 processos disciplinares e sindicâncias, "os quais se encontram em fases distintas de andamento". Em outros estados, entre 2009 e 2011, foram abertos 22 processos disciplinares, todos concluídos, informa a fundação. Porém, só no Dsei Araguaia, em Goiás, existem três PADs abertos, portanto, sem resultado. A fundação não informou quantos servidores foram punidos.
Por meio da assessoria, o Ministério da Saúde informou que o contrato para o fornecimento de combustíveis foi sub-rogado para aperfeiçoar os mecanismos de controle. O governo não identificou problemas no contrato com a Ticket Serviços S.A., mas na gestão e fiscalização do uso de combustível. A Sesai salientou que foi realizado amplo processo de recadastramento dos cartões de combustível e renovação das senhas. Também efetivou o recadastramento dos usuários dos cartões (motoristas, fiscais e gestores) e dos equipamentos e veículos da frota nacional.
"Foi instituída a fiscalização e controle do contrato e uso dos cartões em cada Dsei, já que os distritos assumiram a partir deste ano a responsabilidade pelo uso e controle do combustível da sua frota. Onde há problemas, as responsabilidades estão sendo apuradas", completou.
Sobre as compras de alimentos, o ministério informou que "a Sesai prepara um processo licitatório, que será finalizado até abril de 2012, para o fornecimento nacional de alimentação a todas as 62 Casais (Casa de Saúde do Índio). O serviço contratado ficará responsável pelo fornecimento diário de refeições já prontas para consumo, evitando, assim, possíveis situações de desabastecimento e entraves logísticos na compra e fornecimento desses produtos".

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