sábado, 18 de dezembro de 2010

Finanças

A política monetária e os instrumentos múltiplos

Autor(es): João Basilio Pereima
Valor Econômico - 17/12/2010
http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2010/12/17/a-politica-monetaria-e-os-instrumentos-multiplos
Um banco central está sempre sob pressão de diferentes segmentos organizados da sociedade, variando a intensidade de país para país. No caso brasileiro, as maiores fontes de pressão são os interesses políticos que raciocinam olhando a próxima urna; e os agentes do mercado financeiro, que raciocinam olhando o demonstrativo de resultados. Os primeiros odeiam elevação de juros; os segundos, amam. Os primeiros buscam motivos para postergar aumentos; os segundos, para antecipar.
Quando se fala em independência da autoridade monetária, deveríamos nos referir a independência nos dois sentidos e não apenas em relação ao uso político, como tem sido a ênfase até o momento. Isso ficou evidente, mais uma vez, com os recentes aumentos na taxa de inflação e com a pressão para elevação de juros.
Há dois pontos importantes que merecem ser discutidos: a urgência em elevar juros, bem como a própria escolha da taxa como único instrumento de combate à inflação. O modo como o Banco Central se comportará em relação aos dois pontos definirá doravante sua tão propalada independência.
No que se refere à urgência, pode-se argumentar o seguinte. A inflação de novembro, medida pela IPCA, acusou variação de 0,83% no mês. Por um lado, é preocupante, pois o resultado de novembro completa cinco meses consecutivos de aceleração inflacionária, fato este que não ocorre desde a implantação do sistema de metas em 1999. Ocorreram vários episódios de três meses consecutivos de aceleração abortadas no quarto mês com desaceleração, mas nunca um de cinco.
Por outro lado, a inflação no Brasil possui componente sazonal elevado com costumeira aceleração nos meses de outubro, novembro e dezembro. Além disso, no caso de novembro último, somente o item carnes, que tem um elevado peso de 2,38 pontos na composição final do IPCA, aumentou 10,7% dentro do mês. Outro item com peso relativamente alto de 0,84 ponto é o açúcar, cuja inflação no mês foi de 5,01%. Juntos estes dois itens representam 0,30 ponto percentual do total de 0,83%.
Enquanto o fator tendência reclama urgência na reação da autoridade monetária e exige aumento de juros já, tornando-o um fato consumado na próxima reunião do Copom, os fatores sazonalidade e localização recomendam prudência e relativizam o senso da urgência, no que fez bem o BC em manter a luz vermelha acesa e a taxa de juros constante, não fazendo nada por ora. O horizonte temporal de manobra da política monetária é maior do que creem os alarmistas. Ceder aos apelos da urgência é reduzir a independência e cair cativo de um grupo de pressão.
A segunda questão importante doravante é o uso da taxa básica de juro como instrumento privilegiado na política monetária. A afirmação corrente de que inflação deve ser combatida com aumento juro está correta. O que está errado é afirmar que é somente isso que o Banco Central sabe e deve fazer. É como se após quase um século de ciência monetária, só conseguíssemos desenvolver uma tecnologia de intervenção baseada numa versão qualquer da regra de Taylor para política monetária. Os modelos macroeconômicos fazem isso por questão de simplicidade algébrica e para isolar canais. Modelos mais completos quando vertidos para versões simuláveis tornam-se tão indecifráveis quanto a própria realidade e perdem sua razão de ser: explicar muito com pouco. Disto não se segue que possamos sair por ai pregando aumento e baixa de juro como quem prega a palavra de Deus gritando ao vento.
Existem vários problemas no uso da taxa de juro como instrumento único. Primeiro o fato de que o efeito é decrescente e não linear. Partir de uma taxa de juros baixa e aumentá-la tem um efeito muito maior na inflação e expectativas do que partir de uma taxa elevada e aumentá-la ainda mais. Em segundo lugar, o uso cego e independente da taxa juros pode entrar em contradição com outras políticas macroeconômicas com resultado final nulo, de forma que o mais recomendado é coordenação de políticas e não competição. Em terceiro lugar há outros instrumentos monetários, que estão começando a ser usados pelo Banco Central e que o falso consenso macroeconômico dos anos 1990 e 2000 relegou a segundo plano, que são as políticas de redução de prazos de financiamento, redução de liquidez bancária, graus de alavancagem de operações e exposição de risco de carteiras. É claro que o setor financeiro não gosta de regulação, pois isso diminui o volume de operações. Mas não está no seu escopo e DNA pensar no todo. O quarto e último motivo é que o uso da taxa de juro, num contexto de economia aberta e mobilidade de capitais, pode causar sérios desequilíbrios em outros setores e mercados. Esta aí o câmbio sobrevalorizado, por conta de um longo período de desrespeito à paridade descoberta da taxa de juros. Não bastasse o Brasil ter a maior taxa real de juro do mundo, ele teria que aumentá-la ainda mais para evitar inflação. As consequências serão fomentar o já gigantesco "carry trade" que o aumento de IOF mal consegue deter. Aumentar o juro interno, num momento em que o mundo inteiro desvaloriza suas moedas para estimular exportações e crescer, é expor uma economia inteira às consequências de um câmbio valorizado, por conta de uma política monetária de um instrumento só.
Só um Banco Central independente de todos terá a liberdade necessária para levar em conta estas questões. Agirá muito bem o próximo governo se sua política for a de estender a independência do Banco Central para todos os segmentos da sociedade, de tal forma que os formuladores de política econômica compreendam o momento adequado de usar coordenação macroeconômica e diferentes instrumentos de política monetária e não apenas um só. É um bom primeiro passo para se começar a reduzir os juros, ao invés de aumentá-los.

Bancos podem fazer oferta pública de Letra Financeira

Autor(es): Carolina Mandl | De São Paulo
Valor Econômico - 17/12/2010
http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2010/12/17/bancos-podem-fazer-oferta-publica-de-letra-financeira

Os bancos já podem vender a um público mais amplo as letras financeiras, espécie de debêntures emitidas por instituições financeiras. Ontem, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) deu o sinal verde para que os bancos façam ofertas públicas de letras. Até agora, as letras só podiam ser vendidas de forma privada, o que reduzia o público investidor.
As regras divulgadas pela CVM preveem um trâmite mais acelerado para que as instituições financeiras possam captar dinheiro. "O objetivo do programa foi criar um mecanismo mais ágil, simples e com atualização permanente das informações", diz Guilherme Malik Parente, superintendente de desenvolvimento de mercado, em exercício, da CVM.
Para isso, os bancos vão poder registrar na autarquia o chamado Programa de Distribuição Contínua, espécie de pacote que traz informações sobre volume, taxa de remuneração e vencimento de todas as letras que o banco pretende emitir. Depois, o banco fará as ofertas públicas de letras de forma automática, da mesmo forma que os emissores com grande exposição ao mercado já fazem, acelerando o processo de registro público, que é dado em até cinco dias úteis.
Esse programa pode ser feito por bancos múltiplos, comerciais, de investimento, caixas econômicas e pelo BNDES. Outros agentes financeiros podem acessar o mercado por meio das ofertas públicas tradicionais ou esforços restritos.
Para simplificar o processo, os bancos não precisarão obter o registro de emissor de valores mobiliários para fazer ofertas públicas de letras. Isso porque as instituições financeiras já prestam informações ao Banco Central.
Porém, quem não tiver o registro na autarquia precisará divulgar em seu site as informações financeiras trimestrais e as demonstrações dos três exercícios sociais anteriores.

BNDES poderá emitir até R$ 40 bi em novos títulos

Autor(es): Fernando Travaglini | De Brasília
Valor Econômico - 17/12/2010
http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2010/12/17/bndes-podera-emitir-ate-r-40-bi-em-novos-titulos

O Conselho Monetário Nacional (CMN) regulamentou, ontem, a emissão de letras financeiras pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A instituição estatal poderá emitir até R$ 40 bilhões em novos títulos de dívida como forma de ampliar a captação de recursos para concessão de empréstimos ao setor produtivo.
O CMN estipulou que o limite de lançamento de letras por parte do BNDES seja igual ao seu patrimônio de referência, ou seja, o total de capital em ações e lucros retidos (nível 1), hoje ao redor de R$ 40 bilhões.
O Banco Central (BC) decidiu colocar um limite máximo para que o volume lançado pelo BNDES seja compatível com o tamanho esperado para esse mercado, disse Sérgio Odilon dos Anjos, Chefe do Departamento de Normas (Denor) do BC. "O limite não compromete o tamanho que se espera desse mercado e ainda ajuda a alongar as aplicações do sistema financeiro, dentro do contexto do pacote de medidas anunciadas ontem", disse Odilon.
"Esse ainda é um mercado iniciante, que está ganhando musculatura e força para que cumpra o objetivo de alongamento de prazo das emissões. Queremos que cresça com segurança e paulatinamente", completou.
A letra financeira foi criada no início deste ano por meio de medida provisória, depois convertida em lei, atendendo anseios antigos do sistema financeiro e do Banco Central que permitisse às instituições financeiras casar ativos e passivos de longo prazo. O BNDES, no entanto, não estava autorizado a emitir esses papéis.
De acordo com dados da Cetip de ontem, até agora foram emitidos R$ 23,75 bilhões em letras financeiras, sendo R$ 4,8 bilhões em papéis subordinados.
A medida do CMN publicada ontem (Resolução 3.933) regula um dos dez pontos divulgados anteontem pelo Ministério da Fazenda que integram o pacote de estímulo para o crédito de longo prazo. Outros serão regulamentados por decretos e medidas provisórias.
O BNDES também será obrigado a elaborar um estudo de viabilidade para as emissões que deverá conter, no mínimo, uma análise econômica e financeira da utilização da letra financeira em relação às demais alternativas de captação e fontes de recursos do BNDES.
O documento deve ter ainda estimativa da demanda potencial por títulos de longo prazo e a destinação planejada para os recursos captados.


Autonomia ameaçada

Autor(es): Cristiano Romero | De Brasília
Valor Econômico - 17/12/2010
http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2010/12/17/autonomia-ameacada
Durante dois meses, o Valor conversou com personagens que frequentaram a sala de reuniões do Copom entre 2003 e 2010 e apurou que a atuação autônoma do Banco Central correu riscos em períodos de crise. Em 2004, por exemplo, três diretores chegaram a pedir demissão ao presidente do BC, Henrique Meirelles, temendo as ofensivas de integrantes do governo. Em 2008, a Fazenda liderou um ataque persistente à ação do Banco Central e a própria continuidade da política econômica adotada no início da gestão Lula correu perigo, junto com o emprego de alguns diretores. Mais recentemente, já na transição para o governo Dilma Rousseff, a Fazenda tentou, mais uma vez, enfraquecer o banco ao propor, nos bastidores, a extinção do status de ministro do qual goza hoje o presidente da instituição.
 
Era dezembro de 2002 quando, numa sala da residência oficial da embaixada do Brasil em Washington, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assegurou ao ex-banqueiro Henrique Meirelles que, em seu governo, o Banco Central teria autonomia para conduzir a política monetária. Às vésperas de tomar posse, Lula vinha tendo dificuldade para encontrar um nome para o BC porque todos desconfiavam dos propósitos do governo petista. Meirelles pediu autonomia e Lula a concedeu.
Tendo renunciado ao mandato de deputado federal para o qual fora eleito meses antes, Meirelles assumiu o cargo em janeiro de 2003 e se tornou o mais longevo presidente da história do Banco Central brasileiro. Em agosto de 2004, deixou de dever obediência ao Ministério da Fazenda depois que o presidente Lula lhe concedeu, por medida provisória, status de ministro. Em oito anos, o BC, sob seu comando, superou duas crises, derrubou a inflação e colocou o Brasil na rota do crescimento sustentável. O caminho, no entanto, foi tortuoso.
Em vários momentos dessa trajetória, a autonomia do BC foi colocada à prova. Prevaleceu em vários setores do governo, ao longo do tempo, a ideia de que um "excesso de conservadorismo" da instituição impediu que a economia brasileira crescesse mais do que cresceu - na era Lula, o Produto Interno Bruto (PIB) avançou, em média, 4% ao ano, face a 2,47% da era Fernando Henrique Cardoso; em 2010, está crescendo 7,5%, a taxa mais alta em 24 anos.
Várias das crises que ameaçaram a autonomia do BC jamais vieram a público. Nos últimos dois meses, o Valor conversou com personagens que frequentaram a sala de reuniões do Comitê de Política Monetária (Copom) no período 2003-2010 e apurou algumas dessas histórias. É ali, no oitavo andar do edifício-sede do BC em Brasília, num ambiente frio, mas adornado por uma tela de 5 por 4 metros do pintor Cândido Portinari - "Descobrimento do Brasil"-, que o Comitê se reúne para decidir os destinos da economia brasileira, definindo, a cada 45 dias, a taxa básica de juros (Selic).
Os relatos, mantidos no anonimato graças ao chamado "dever fiduciário" de ex-integrantes do Copom, revelam que a autonomia do BC foi sempre muito frágil. Em 2004, por exemplo, temendo os constantes ataques de integrantes do governo, três diretores foram a Meirelles pedir as contas. Em 2005 e 2006, o então ministro da Fazenda, Antônio Palocci, montou uma operação para substituir Meirelles e dois diretores oriundos do mercado. Realizou parte do plano, mas sua própria demissão, em março de 2006, o impediu de concluí-lo.

Em 2008, não somente o emprego de alguns diretores esteve em risco, mas também a própria continuidade da política econômica adotada cinco anos antes. Naquele ano, o Ministério da Fazenda liderou um ataque persistente à autonomia do BC - mais recentemente, já na transição do governo Lula para o de Dilma Rousseff, a Fazenda tentou, novamente, enfraquecer o banco ao propor, nos bastidores, a extinção do status de ministro do qual goza hoje o presidente da instituição.
Os fatos mostram que, embora o BC tenha conseguido alcançar resultados positivos nos últimos anos, a ausência de autonomia formal limita sua ação, tornando-a mais onerosa para a sociedade. A desconfiança de que o Copom age sob pressão política faz o mercado duvidar do interesse do governo em combater a inflação. As evidências mostram que, quanto menor é a inflação por um período maior de tempo, menor é a taxa de juros exigida pelo mercado e, portanto, menor o custo de rolagem da dívida pública.
"Vai indo..."
Era março de 2008 quando o presidente do BC, Henrique Meirelles, convidou um importante diretor da instituição para jantar num restaurante de Miami. Ambos participavam, na cidade americana, da reunião anual do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O objetivo era explicar que, dessa vez, seria difícil segurar a pressão do governo contra o início de um novo ciclo de aperto monetário.
O presidente do BC alegou que não havia clima no governo para aumento dos juros. Num dado momento da conversa, sugeriu que ele, aquele diretor e um terceiro colega pedissem demissão. Seria uma forma, justificou, de os três não se submeterem à pressão do governo. O diretor ficou surpreso com a proposta, mas aguardou a frase seguinte do chefe para entender o real propósito da conversa.
"Vai indo que depois eu vou", propôs Meirelles, ressalvando, em seguida, que "trâmites burocráticos" o obrigariam a permanecer no cargo por mais algum tempo, após a saída dos dois auxiliares. A reação do diretor também surpreendeu Meirelles: "O que é isso, presidente? Não vamos fazer uma coisa dessas com o senhor. Seria uma desfeita muito grande. Sairemos todos juntos".

O colóquio se encerrou ali. Meirelles disse ao interlocutor que conversaria com o presidente Lula na volta ao Brasil. O diretor saiu do jantar com a nítida impressão de que retornaria ao país sem saber se continuava diretor. O episódio marcou o período mais conturbado da gestão de Meirelles à frente do Banco Central.
De volta a Brasília, o presidente do BC comandou a reunião do Copom que, no dia 16 de abril de 2008, contrariando todas as pressões sofridas até ali, aumentou a taxa Selic de 11,25% para 11,75% ao ano. Nos dias seguintes, chegou a acreditar que Lula o demitiria. Além disso, ele sabia que o ministro da Fazenda, Guido Mantega, pressionava o presidente para substituí-lo pelo economista Luiz Gonzaga Belluzzo.
Esse drama começou a se desenhar alguns meses antes, quando o BC, utilizando seus códigos de comunicação, passou a sinalizar ao mercado que voltaria a aumentar os juros. O movimento já era esperado e alguns participantes do mercado acreditavam que estava vindo tarde demais.
O Copom passara dois anos - de outubro de 2005 a setembro de 2007 - reduzindo os juros, que recuaram de 19,5% para 11,25% ao ano. A taxa foi mantida nesse patamar até março de 2008. No período, a economia viveu o seu momento mais luminoso na era Lula. O PIB crescia a 6% ao ano, com a inflação sob controle - em 2007, o IPCA atingiu a meta (4,46%).
O problema é que, assim como ocorreu em 2004, a inflação começou a mostrar sinais preocupantes de aceleração. Quando decidiu interromper a queda dos juros em outubro de 2007, o Comitê já o fez porque percebeu que a economia estava muito aquecida. No fim do ano, ficou claro que seria necessária uma nova rodada de aperto monetário.
Os códigos do Copom
No início de 2008, o diretor de Política Econômica do BC, Mário Mesquita, sugeriu a Meirelles que se fizesse um ajuste preventivo na Selic. Seria uma forma de promover uma aterrissagem suave da economia. Para tanto, seria necessário preparar o mercado para a alta de juros que viria adiante.
A boa comunicação com os agentes econômicos é crucial para o funcionamento do regime de metas. É por meio dela que o BC gerencia as expectativas do mercado, trazendo-as para sua leitura da economia. O objetivo do banco não é surpreender o mercado, mas dar previsibilidade a seus movimentos.
O atual código de comunicação do Copom foi desenvolvido por Afonso Bevilaqua, diretor de Política Econômica entre julho de 2003 e março de 2007, e aperfeiçoado por Mesquita. Por esse código, o aviso ao mercado de que vem aumento de juros no horizonte é feito por meio de duas reuniões.
Na primeira, através do comunicado divulgado nos dias da reunião do Copom, os diretores afirmam que vão "acompanhar" a evolução da economia. Na ata dessa reunião, divulgada sempre oito dias depois, eles apertam a linguagem. No comunicado da reunião seguinte do Copom, o BC diz que vai "monitorar atentamente" o cenário econômico. Na ata da semana seguinte, há um novo aperto na linguagem. No terceiro encontro do Comitê, ocorre o aumento dos juros.

Bevilaqua e Mesquita costumavam usar também os anexos do Relatório de Inflação, divulgado trimestralmente com informações detalhadas sobre o estado da economia, para mandar recados ao mercado. Mesquita fez outra inovação. No começo do regime de metas, em 1999, as atas do Copom não eram escritas de forma incremental. Os documentos começavam do zero. De 2007 a 2010, Mesquita escreveu as atas a partir de sua última versão, elaborada na reunião anterior. A partir dali, ficou mais fácil entender a narrativa e, com isso, houve uma melhora sensível na comunicação do BC.
A ofensiva de Mantega
Assim como o mercado, Mantega e sua equipe entendem muito bem os códigos do Copom. Na ata da reunião de janeiro de 2008, estava escrito: "O Comitê irá acompanhar a evolução do cenário macroeconômico (...)". Na ata do encontro seguinte, em março, veio o sinal derradeiro: "O Comitê irá monitorar atentamente (...)".
Inconformado, Mantega foi à luta. Aproveitando-se do fato de que Meirelles estava de férias no início de março daquele ano, convocou o diretor Mário Mesquita para uma reunião na Fazenda. Durante o colóquio, sem deixar o interlocutor dizer uma palavra, falou durante 40 minutos sobre as hipóteses que o levavam a crer que não seria necessário elevar os juros naquele momento.
Tendo entrado mudo e saído calado da conversa, Mesquita ignorou os argumentos do ministro. Dias depois, deu entrevista coletiva para anunciar o Relatório de Inflação de março e praticamente confirmou que os juros subiriam na reunião de abril. Mantega se sentiu pessoalmente afrontado e queixou-se a Meirelles. Considerou um "absurdo" um funcionário de segundo escalão desautorizá-lo daquela maneira.
Ainda era março quando, durante reunião de Lula com conselheiros informais, entre os quais Belluzzo e o ex-ministro Delfim Netto, Mantega expôs, na presença de Meirelles, os riscos de o Brasil voltar a gerar déficits elevados nas contas externas. Durante o encontro, previu-se que, dali a dois anos, a elevação do déficit provocaria uma forte desvalorização do real e, por consequência, pressão inflacionária. Em resposta, o Banco Central jogaria a taxa de juros na lua e a economia entraria em depressão.
Era o pior dos mundos para Lula - afinal, seu projeto prioritário era eleger o sucessor a qualquer custo. De maneira sub-reptícia, participantes da reunião sugeriram ao presidente a mudança da política econômica. O modelo mencionado era o da Argentina, que naquele momento crescia de maneira veloz, com juros negativos e câmbio prefixado e desvalorizado, apesar da inflação alta.

Aqueles encontros eram constrangedores para o presidente do BC pois, como autoridade monetária, ele tem "dever fiduciário". Como havia consultores privados nos convescotes, Meirelles evitava emitir opiniões que sugerissem aos presentes futuras decisões do BC.
Medo de crescimento
Um terceiro movimento de Mantega, para tentar evitar a alta dos juros, foi procurar convencer o presidente da República a aprovar medidas de controle do crédito. Lula rejeitou a sugestão. O ministro, então, decidiu chamar os principais banqueiros do país para uma reunião em Brasília, com a presença dos diretores do BC Mário Mesquita, Mário Torós (Política Monetária) e Alexandre Tombini (Normas). No encontro, Mantega reconheceu que havia um problema de inflação, mas disse que não seria possível subir os juros e que seria preciso resolvê-lo com restrições ao crédito.
Não satisfeito, no início de abril, durante reunião do chamado Conselhão, instância criada por Lula para reunir empresários no Palácio do Planalto com alguma periodicidade, o ministro deu uma estocada na turma do BC. "Os ortodoxos costumam ter medo do crescimento. Acham que traz desequilíbrios econômicos", afirmou.
A tese defendida pela Fazenda era de que o aumento da inflação, naquele momento, decorria da alta sazonal dos preços de alimentos. De tanto ouvir o argumento, Mesquita pediu a Altamir Lopes, chefe do Departamento Econômico do BC, para retirar do IPCA os cinco itens que mais o pressionavam naquele momento e também os cinco que mais caíam. O resultado foi o mesmo. Em qualquer medida de núcleo, a inflação estava subindo.
O tempo mostrou que o BC estava certo. A despeito das pressões do governo, o Copom aumentou os juros em abril e nos meses seguintes, até setembro de 2008. No dia 15 daquele mês, o banco americano Lehman Brothers quebrou e a crise atingiu o Brasil. A economia teve uma parada brusca no último trimestre, mas, mesmo assim, o IPCA fechou o ano em 5,9%, apenas 0,6 ponto percentual abaixo do limite máximo de tolerância do regime de metas. Nos 12 meses concluídos em outubro, batera em 6,41%, depois de ter iniciado o ano em 4,56%. Como estava convencido de que a meta seria descumprida, Mesquita já tinha começado a escrever a carta aberta ao ministro da Fazenda, explicando os motivos da inadimplência. Por causa da crise, a carta acabou não sendo necessária.
"Viu, Meirelles?"

A pressão sobre o Copom em 2008, embora tenha sido a mais forte em oito anos de Lula, repetiu padrão do ano anterior. No dia 22 de janeiro de 2007, início do segundo mandato do presidente, o governo lançou com toda pompa, no Palácio do Planalto, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Tendo superado a crise do mensalão e obtido a reeleição com o apoio de 14 partidos, Lula começava, ali, a fazer uma inflexão na política econômica que adotara no primeiro mandato. A ordem era gastar mais e aumentar a presença do Estado na economia.
Durante a cerimônia, Mantega apresentou cenários para a taxa de juros nos anos seguintes e aproveitou o momento para fustigar o presidente do BC. "A primeira conclusão é que o mercado está esperando uma redução da taxa Selic. A continuação, viu, Meirelles?", disse Mantega, diante de uma plateia de empresários, ministros e parlamentares.
O gesto foi entendido pela diretoria do BC como uma tentativa de constranger o Copom, que já vinha discutindo, internamente, a possibilidade de diminuir o ritmo de queda da Selic, de 0,5 para 0,25 ponto percentual. Na ata da última reunião de 2006, o Comitê emitira o primeiro sinal ao afirmar que acompanharia "atentamente" a evolução da inflação nos meses seguintes.
O Copom vinha reduzindo os juros desde setembro de 2005. No fim de 2006, o BC constatou que a economia estava decolando. A inflação, que em 2006 caiu ao menor patamar da história do regime de metas - 3,14% -, começava a ficar saliente.
Ignorando a admoestação de Mantega, no dia 24 de janeiro de 2007, dois dias depois do lançamento do PAC, o Copom reduziu o ritmo de corte da Selic, de 13,25% para 13% ao ano. Ali, as relações entre Fazenda e BC, que já não eram boas, azedaram de vez.
A primeira crise ninguém esquece
O primeiro momento de ameaça à autonomia do BC, no governo Lula, ocorreu em setembro de 2004. Até então, o banco vivera um período de trégua, para contornar a crise de 2003, ano em que o presidente Lula assumiu o poder. Para combater uma inflação que, nos 12 meses acumulados até maio, chegara a 17,24%, o Copom elevou os juros a 26,5% ao ano. À medida que as expectativas de inflação foram melhorando, o Comitê foi diminuindo a Selic.
Em abril de 2004, a taxa caiu a 16% ao ano e ficou nesse patamar nos quatro meses seguintes. Já em meados do ano, o BC constatou que a economia havia superado a depressão de 2003 e acelerava numa velocidade insustentável. A inflação corrente anualizada, que vinha cedendo desde maio do ano anterior, voltara a crescer. Depois de cair de 17,24% em maio de 2003 para 5,15% nos 12 meses acumulados até maio de 2004, tornara a subir, chegando a 7,18% em agosto daquele ano. As expectativas se deterioravam.

O BC começou, então, a sinalizar ao mercado que voltaria, em breve, a elevar os juros. O aviso provocou grande mal-estar no governo. Por causa das medidas de ajuste fiscal e do arrocho monetário, 2003 tinha sido um ano difícil para o presidente Lula. O PIB avançara apenas 1,15%. O segundo ano do mandato começara com perspectivas bem melhores, com a economia acelerando - em 2004, o crescimento atingiu 5,71%.
O receio de integrantes do governo era de que a expansão de 2004 fosse abortada por "excesso de conservadorismo" do Copom. Além disso, aquele era um ano eleitoral, em que estava em disputa a reeleição da então prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, do PT, tendo como adversário José Serra, do PSDB. Derrotada no pleito, Marta responsabilizou a política econômica do governo pelo malogro.
As críticas ao BC pipocavam de todos os lados, da diretoria da Petrobras ao então poderoso ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu. Internamente, embora não fossem alvos diretos daquela pressão política, os diretores do BC começaram a temer pela manutenção da autonomia.
Os sinais de insatisfação com o banco eram evidentes. Indicado em julho de 2004 para assumir a diretoria de Política Monetária, o economista Rodrigo Azevedo, oriundo do mercado - ele veio do banco Credit Suisse First Boston -, teve que esperar três meses para ser sabatinado pelo Senado. Os amigos brincavam dizendo que ele passara por quarentena na entrada e na saída do BC, mas a da entrada não tinha sido remunerada.

Poucos dias antes da reunião do Copom de 15 de setembro, três diretores - Eduardo Loyo (Estudos Especiais), Afonso Bevilaqua (Política Econômica) e Alexandre Schwartsman (Assuntos Internacionais) - foram ao gabinete do presidente do banco, no 20º andar do edifício-sede da instituição em Brasília. Durante o encontro, deixaram claro que, naquele ambiente, não conseguiriam trabalhar. A preocupação era com a possibilidade de as críticas se tornarem pressão real sobre os integrantes do Comitê.
Meirelles entendeu a conversa como um pedido velado de demissão. Preocupado, deu garantias de que a autonomia estava assegurada. Na reunião do dia 15, o Copom aumentou a taxa de juros para 16,25% ao ano. O novo aperto monetário, o segundo da era Lula, estava apenas começando. Apesar das garantias dadas por Meirelles, nos meses seguintes as críticas ao BC não cessaram.
Interessado em conquistar apoio político para sua diretoria, o presidente do BC conseguiu agendar, com a ajuda do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, um encontro dos diretores com o presidente Lula, em dezembro de 2004. O objetivo era distender as relações. Na reunião, Meirelles e os diretores mostraram a Lula que a inflação é um "mecanismo perverso de distribuição de renda às avessas". Beneficia os mais ricos e penaliza os pobres. A conversa foi boa, mas seus frutos não foram duradouros, como se viu depois.
A operação Palocci
O aperto monetário iniciado em setembro de 2004 se estendeu até setembro de 2005, o ano mais difícil, do ponto de vista político, para o presidente Lula. Foi o ano do escândalo do mensalão, quando experimentou os níveis mais baixos de popularidade. O BC conseguiu domar a inflação, derrubando-a para 5,7%, depois de fechar 2004 em 7,6%, mas o ajuste teve um preço. O PIB cresceu apenas 3,16% em 2005.
Por causa da crise política e do ajuste na economia, a pressão sobre o BC se intensificou. A queda do PIB no terceiro trimestre (-0,98%), em meio à fase mais aguda da crise política, levou o então presidente do BNDES, Guido Mantega, a responsabilizar o Banco Central pelo resultado e particularmente Afonso Bevilaqua, deixando claro que a ira do governo era dirigida exclusivamente aos diretores do BC originários do mercado.
Ao perceber que não conseguiria conter a pressão por muito mais tempo, Palocci iniciou em 2005 um movimento em dois atos. Inspirado na máxima do escritor italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa, segundo a qual é preciso que alguma coisa mude para que tudo fique como está, Palocci convidou o então diretor executivo do Brasil no Fundo Monetário Internacional (FMI), Murilo Portugal, para retornar ao Brasil e assumir a secretaria-executiva da Fazenda.

Ato contínuo, Palocci chamou o sub de Portugal no Fundo, Alexandre Tombini, para comandar uma diretoria do BC (a de Estudos Especiais). Por fim, convenceu Eduardo Loyo, então diretor dessa área, a assumir a representação brasileira no FMI. O segundo ato seria mais ousado, mas acabou não ocorrendo porque, antes, em março de 2006, o ministro perdeu o cargo, acusado de envolvimento na quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa - em agosto de 2009, o Supremo Tribunal Federal o inocentou.
O plano de Palocci era, num segundo momento, deslocar Murilo Portugal para a presidência do BC e Henrique Meirelles, para o Ministério do Planejamento. Meirelles sabia do plano e estava conformado, tanto que já falava, em conversas reservadas, da "importância do Planejamento". As mudanças não caracterizariam, pelo menos no papel, o enfraquecimento do BC. A parte mais difícil da operação seria demitir o principal alvo da cólera governista - Afonso Bevilaqua.
Com a queda de Palocci, Guido Mantega, o maior oponente no governo à política monetária, ascendeu ao cargo de ministro de Fazenda. Dias difíceis estavam por vir.
Bevilaqua: a falsa moeda de troca
Com a frustração do segundo ato da operação Palocci, Bevilaqua ficou no cargo, mas os ataques da artilharia do governo se intensificaram. Depois de três anos no cargo, Bevilaqua planejava deixar o banco. Por causa da ausência de mandato, diretores provenientes do mercado e da academia não costumam levar suas famílias para Brasília, afinal, a perda do emprego é sempre iminente. Na capital federal, eles moram em hotéis.
O trabalho no BC afastou Bevilaqua do convívio diário com o filho de três anos. O salário - R$ 8.234,00, na ocasião -, menor que o de um funcionário em início de carreira (cerca de R$ 14 mil), também não ajudava muito, embora a passagem pela instituição seja encarada como um investimento no futuro; são raros os casos de ex-diretores que, depois de deixar o BC, não fazem fortuna no setor privado.
Os rumores de que Bevilaqua deixaria o BC avolumaram-se em março de 2006, quando Palocci deixou a Fazenda. De fato, ao longo do ano, ele tratou várias vezes da saída com o presidente Henrique Meirelles. Ficou acertado, porém, que a estratégia seria evitar que a saída fosse vista como uma capitulação do BC às pressões da Fazenda.
Na transição do primeiro para o segundo mandato de Lula, novos rumores deram conta de que a saída de Bevilaqua seria a moeda de troca para a permanência de Meirelles. Para desmentir essa tese uma vez mais, Bevilaqua permaneceu no BC até março de 2007, tendo, inclusive, participado da polêmica reunião do Copom em janeiro e do primeiro dia do encontro de março.
No anúncio da saída do diretor, questionado se a demissão do seu "braço direito" o tornava mais exposto ao "fogo amigo" no governo, Meirelles deu a dimensão das pressões que sofreu desde sempre: "Ele [o fogo amigo] nunca me abandonou".
O fim do equilíbrio
Embora Meirelles tenha feito questão de deixar claro que o BC não estava se enfraquecendo, a saída de Bevilaqua foi o prenúncio de uma nova fase no Copom. Quando Ilan Goldfajn, remanescente da gestão Armínio Fraga, deixou a diretoria de Política Econômica em maio de 2003, Meirelles trouxe Bevilaqua e Loyo. Com isso, mostrou ao mercado que a autonomia concedida por Lula era para valer.
A diretoria do BC passou a ter, naquela época, quatro diretores oriundos do mercado e da academia e quatro da instituição. Como Meirelles também é oriundo do mercado, houve, na maior parte do primeiro mandato de Lula, predomínio de dirigentes de fora da casa. No segundo mandato, esse quadro inverteu-se inteiramente.
A partir de 2007, os diretores de fora que saíram do BC foram substituídos por funcionários do banco. Com a demissão de Mário Torós, em novembro de 2009, restou apenas Mário Mesquita, mas este também deixou o BC em março deste ano.
Ninguém duvida, mesmo no mercado, que os funcionários do Banco Central sejam, em geral, qualificados e representem uma ilha de excelência em Brasília. Ainda assim, o seu domínio no Copom, sem mandato, resulta num desequilíbrio que ameaça a autonomia operacional do BC. Assim como uma diretoria dominada por nomes do mercado poderia ser capturada pelos interesses das instituições financeiras, uma com a predominância de funcionários de carreira pode ser controlada pelos interesses políticos do governo.
Os números da economia brasileira mostram que a autonomia, na prática, funcionou nos anos recentes. Em oito anos, graças à atuação do BC, o país superou duas graves crises - em 2003 e 2008 -, aumentou a sua média de crescimento e controlou a inflação, embora ela ainda esteja num patamar elevado quando comparada a padrões internacionais.
De olho nos jornais de Goiânia
Nos oito anos à frente do Banco Central, Meirelles procurou amortecer as pressões políticas que lhe chegavam de todos os lados. Ele operou, durante todo esse tempo, para evitar que assuntos políticos chegassem ao Copom. Não há sequer um diretor oriundo do mercado ou da academia que tenha recebido qualquer apelo dele para votar desta ou daquela maneira.
Praticamente não houve, durante todo esse período, uma reunião do Comitê sem que, antes, Meirelles conversasse com o presidente Lula. As conversas nem sempre foram fáceis. Em dia de Copom, dois diretores que moravam no Hotel Blue Tree (hoje, Royal Tulip), vizinho do Palácio da Alvorada às margens do Lago Paranoá, viram mais de uma vez Meirelles chegar à residência oficial do presidente da República em sua SUV Hilux.
Nos dias anteriores à reunião do Comitê, o presidente do BC procurava conversar individualmente com cada diretor. Nessas conversas, falava do quadro político, mas eximia-se de dar orientações. Por outro lado, em alguns momentos, Meirelles dividiu-se entre dois personagens: o banqueiro central que precisava zelar por sua reputação técnica e o político que ambicionava entrar em disputas eleitorais.
O presidente do BC acalentou, por exemplo, disputar eleições em seu Estado natal. Seu último projeto político-eleitoral, frustrado pelas artimanhas dos líderes do seu partido, o PMDB, foi ser vice na chapa de Dilma Rousseff à Presidência da República. Para saber dos interesses políticos do chefe, os diretores cultivaram o hábito de ler os jornais de Goiânia.
Para alguns diretores, Meirelles "passou da conta" em alguns momentos por causa de suas aspirações políticas, mas nada que pudesse pôr em risco a estabilidade da economia brasileira.

A batalha pela Casa Branca

Autor(es): Matias Spektor | Para o Valor, do Rio
Valor Econômico - 17/12/2010
http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2010/12/17/a-batalha-pela-casa-branca

Há oito anos, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva entrou pela primeira vez na Casa Branca. George W. Bush e sua equipe o esperavam de pé. "Senhor presidente", disparou Bush, "algumas pessoas dizem que uma pessoa como o senhor não pode fazer negócios com uma pessoa como eu. Estamos reunidos hoje para mostrar que estão equivocados". A mensagem espalhou-se como fogo. Naquela manhã de 10 de dezembro de 2002, ninguém esperava o gesto.
Havia resistências a Lula na capital americana. O "New York Times" o chamava de "esquerdista", enquanto o "Washington Times" alertava que "se o candidato pró-[Fidel] Castro for eleito presidente do Brasil, poderemos ter um regime radical". Quatro dias antes do primeiro turno, 12 deputados republicanos manifestavam preocupação a Bush numa carta pública.
O mesmo ocorria no mercado financeiro. Para o "Financial Times" "todos sabem que a solvência brasileira está por um fio". Goldman Sachs via uma crise no horizonte. Para piorar a situação, em meses recentes a Argentina dera o maior calote da história e a Venezuela assistira a uma tentativa de golpe contra Chávez. Não havia linha direta entre o Palácio do Planalto e a Casa Branca: Fernando Henrique Cardoso tinha dificuldade em dialogar com Bush e durante 14 meses a embaixada americana em Brasília ficara sem embaixador.
Mas quando as pesquisas de opinião começaram a apontar Lula como ganhador da corrida presidencial de 2002, um trio improvável iniciou uma manobra diplomática para tranquilizar a Casa Branca: Donna Hrinak, a recém-chegada embaixadora americana em Brasília, José Dirceu, presidente do PT e mão direita de Lula, e o próprio presidente Fernando Henrique.

A embaixadora


Donna Hrinak desembarcou em Brasília em abril de 2002 com um português impecável. Como vice-cônsul dos Estados Unidos em São Paulo na década de 1980, acompanhou de perto as greves do ABC paulista. Expoente da geração que protestou contra a guerra do Vietnã, ficou encantada com a mobilização social que viu. Daquela experiência ficou a paixão pelo país: "Não sou brasileira nesta vida, mas poderia ter sido numa vida passada..." Não era sua primeira transição presidencial: acompanhou morte de Tancredo Neves e os primeiros anos do governo Sarney.
Quando pousou em Brasília em 2002 e um jornalista lhe perguntou o que achava de Lula, ela respondeu autoconfiante. "Não temos medo de Lula", disse, "ele encarna o sonho americano". Filha de um pai metalúrgico de Pittsburgh e de uma mãe que não completou o segundo grau, Donna Hrinak entendia bem a respeito da ascensão social. Ela mesma era a primeira mulher embaixadora de carreira dos EUA.
Desde que assumiu a embaixada em Brasília, Donna Hrinak trabalhou para tornar palatável, em Washington, a ideia de Lula presidente. Lula entendeu logo. Quando a encontrou pessoalmente durante a campanha, abriu a conversa assim: "Eu quero falar com você porque sei que você não tem medo da gente".

O operador

Lula escolheu José Dirceu para comandar a campanha em Washington. Em julho de 2002 Dirceu visitou os Estados Unidos com uma cópia da "Carta ao Povo Brasileiro" traduzida para o inglês. Visitou todas as instituições que importavam: Casa Branca, Tesouro, Congresso americano e mercado financeiro. Tirou fotos onde um ano antes se erguiam as Torres Gêmeas, num gesto de solidariedade. Mandou cartas a Bush pai e ao vice-presidente Dick Cheney e pediu ajuda a influentes empresários para assegurar aos americanos que a "Carta ao Povo Brasileiro" era para valer.
A embaixada americana reforçava a mensagem em seus telegramas para Washington: "Todos os nossos interlocutores têm fé em Dirceu para tomar as decisões difíceis, mas responsáveis... Ninguém espera um calote do governo". Donna Hrinak conhecera Dirceu na década de 1980 e durante muitos anos guardara como recordação um chaveiro com as inscrições "Vote em José Dirceu".
Dirceu também buscou o apoio das centrais sindicais americanas. Para isso mobilizou Stanley Gacek, um embaixador informal do PT nos EUA. Gacek estava informado, visitava o país havia 20 anos, tinha ligações e conhecia todo o meio sindical. Quando Lula foi preso em 1981, fazia parte da comitiva internacional que veio acompanhar o caso. Durante a década de 1990, Gacek articulara as viagens de Lula e Marco Aurélio Garcia aos Estados Unidos. Agora, trabalhando no Departamento de Relações Internacionais da poderosa central AFL-CIO, a maior e mais influente central sindical americana, ele atuava nos bastidores para assegurar que as garantias de Lula ao setor financeiro não alienassem a base de apoio sindical.

O magistrado

No afã de tranquilizar os EUA, o PT também contou com um aliado inesperado: Fernando Henrique Cardoso. Foi para ele que José Dirceu ligou ao sair de um encontro no influente Institute for International Economics em Washington, onde ouvira economistas renomados dizer que o Brasil provavelmente seria forçado a entrar em moratória.
Fernando Henrique havia inventado um novo ritual de transição presidencial. Designou uma equipe formal para gerenciá-la, criou escritórios para a equipe do presidente eleito e instruiu seus ministros a produzirem milhares de páginas de informação para seus respectivos sucessores. Assinou um acordo-ponte com o FMI para evitar possível corrida dos mercados contra o real e colocou todos os candidatos presidenciais para assinar junto. Também concedeu à nova equipe acesso a informações secretas e abriu um canal de comunicação direta com Lula.
A decisão de arquitetar uma transição nesses moldes não se tratava de benevolência nem simpatia pessoal, mas de cálculo preciso. A turbulência dos mercados, temia o presidente, poderia ferir o real de morte. Seu maior legado, a estabilidade financeira, poderia acabar com seu governo.
Além disso, o significado da transição de 2002 era enorme. Se Lula ganhasse, o Brasil poderia assistir pela primeira vez na sua história à passagem do poder de um presidente eleito pelo povo para outro mandatário igualmente eleito pelo povo que, por sua vez, conseguiria completar seu mandato sem morrer, renunciar ou ser deposto por um golpe. Fernando Henrique estava determinado a deixar esse legado.
Ainda durante a campanha, o presidente enviou seu chefe da Casa Civil, Pedro Parente, para os Estados Unidos. Parente visitou a Casa Branca, o Departamento de Estado e o Tesouro americano com uma cópia do projeto de transição debaixo do braço. Em cada reunião Parente repetiu palavras de confiança no PT e na mensagem da "Carta ao Povo Brasileiro". Assegurou que não haveria rupturas.
Lula entendia bem o poder simbólico da atitude de Fernando Henrique e era grato por ela. Menos de 24 horas depois de sua vitória, em conversa telefônica com o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, o presidente eleito enfatizava: "Eu gostaria de dizer para o primeiro-ministro que o presidente Fernando Henrique Cardoso jogou um papel importante nessa eleição. Primeiro funcionando como magistrado, segundo criando uma comissão de transição jamais vista no nosso continente".
Mas Fernando Henrique sabia que isso não bastava. Uma transição estável dependeria em boa parte da reação da Casa Branca, uma vez que ela tinha a capacidade de orientar as expectativas do mercado. E sabia que a repetição da "Carta ao Povo Brasileiro" à exaustão não bastaria para desarmar as arraigadas desconfianças de Washington em relação a Lula. Por isso, instruiu seu embaixador em Washington a dar todo o apoio que a equipe do PT solicitasse.
Rubens Barbosa era diplomata de carreira, mas chegara a Washington por sua amizade com Fernando Henrique. Como embaixador na capital americana ele tinha construído um perfil pouco comum. Hiperativo, trabalhou para construir uma rede de relacionamentos no Executivo, Legislativo, na academia e nos Estados americanos que era pouco usual. Ao receber as instruções do presidente, trabalhou de modo sistemático para assegurar uma boa recepção para Lula. Ao lembrar aqueles acontecimentos hoje, os americanos envolvidos ressaltam que as palavras de Rubens Barbosa foram cruciais para moldar a percepção de Washington em relação a Lula.

O convite

Foi ainda às vésperas do segundo turno de outubro de 2002 que Donna Hrinak e Rubens Barbosa começaram a operar para que Bush desse um telefonema pessoal a Lula no caso de uma vitória. A importância do telefonema ia muito além das manchetes para a mídia brasileira. A notícia daria direção política a Washington, calando as vozes anti-Lula no próprio governo americano.
Um telefonema do presidente dos EUA pode levar meses de negociação. A embaixadora ainda lembra: "Havia muita preocupação a respeito de se Bush ligaria para Lula... Ninguém duvidava que Bush ligaria para Serra se ele ganhasse... Mas ele ligaria para Lula? E o sentimento em Washington era que Bush não ligaria imediatamente, que ele esperaria. Bush ligou para [o aliado e presidente colombiano, Álvaro] Uribe três dias depois da vitória... Então nós na embaixada começamos a alertar o PT de que se Bush não ligasse na hora isso não devia ser visto como um sinal negativo, eles não deviam se preocupar. E ao mesmo tempo a gente sinalizava para Washington e dizia: "Vocês precisam ligar, liguem assim que possível, isso vai significar muito aqui"".
Foi por isso que todos se surpreenderam quando, poucas horas depois da apuração, Bush fez a ligação para Lula do Air Force One. "Parabéns pela grande vitória... O senhor conduziu uma campanha fantástica. Nós acompanhamos tudo de perto. Ficamos muito impressionados com sua capacidade para gerar essa grande maioria..." O presidente americano não parou aí: "Se for de seu interesse que eu o receba em Washington a qualquer momento, eu terei todo prazer em conhecê-lo".
Lula aceitou a proposta de imediato: "Presidente, espero que nos vejamos até o fim do ano. Teremos muitas coisas para tratar".

A proposta não estava no script da conversa nem tinha sido discutida previamente no Departamento de Estado ou no Conselho de Segurança Nacional. Bush aceitou a sugestão brasileira de improviso, no calor da conversa telefônica. Donna Hrinak pensou: "Graças a Deus... Vai facilitar muito a nossa vida".
Não era comum para Bush encontrar presidentes eleitos. Mas a situação era especial. Condoleezza Rice, assessora de Segurança Nacional, repetia que "o Brasil é importante demais para ser ignorado". De quebra, a assessora de Segurança e Bush tinham respeito pelo Brasil. Diferentemente de muitos países que prometeram a eles apoiar uma invasão do Iraque, o Brasil sempre dissera que não o faria. Condoleeza Rice lembra até hoje: "Uma coisa que contava a favor do Brasil é sempre ter sido honesto conosco a respeito de sua posição".

Acertando o tom

Dois dias depois de conversar com Bush ao telefone, Lula encontrou Donna Hrinak para uma conversa pessoal. "Estou preparado para isso", afirmou. A embaixadora deu-lhe uma dica. O encontro no Salão Oval, disse, será igual a uma dança delicada. Cada lado vai esperar o outro antes de dar um passo. Ela continuou: o casal nem sempre concordará, daí a importância de manter a comunicação sempre fluida. Por isso, ela explicou, Lula devia prestar atenção apenas aos anúncios oficiais do governo americano, sem se preocupar com aquilo que circulasse na imprensa.
Ela sabia que os níveis de confiança mutua entre as equipes de Bush e Lula eram baixos. A prioridade absoluta era controlar danos. "É importante evitar surpresas negativas." Lula a tranquilizou: "Não haverá surpresas... Meu governo não será ideológico".
Lula havia entendido a mensagem perfeitamente. Precisava construir a confiança dos americanos. Disse a Donna Hrinak que sua relação com Fernando Henrique era ótima. Manifestou admiração por Franklin D. Roosevelt, Lyndon B. Johnson e John F. Kennedy. Confidenciou ter lido tradução de um discurso do presidente Johnson sobre a "Guerra contra a Pobreza" para um grupo de ativistas do PT sem revelar a eles a autoria.
Lula foi além: "As pessoas não deviam confundir nossa admiração juvenil pela revolução cubana com nossa posição com o regime cubano atual". Caracterizou a si mesmo como um defensor da liberdade política e econômica para todos os povos e observou que não havia liberdade em Cuba.
Lula tomou cuidado máximo com as palavras. Criticou a postura crescentemente belicista de Bush e disse à embaixadora que uma intervenção no Iraque somente seria legítima se ocorresse com a anuência das Nações Unidas. Ao fazê-lo, porém, disse a ela que os Estados Unidos eram a peça central da ordem global, daí a importância de manter tudo no âmbito da ONU.

O legado

O encontro de Bush e Lula no dia 10 de dezembro de 2002 deixou todos boquiabertos. Revelou que a direita americana poderia fazer negócios com a esquerda latino-americana. Inaugurou o perfil de um Lula estadista. E, apesar de Bush não ser querido no Brasil, criou uma inédita reserva de boa vontade mútua.
Ao fim do encontro, Bush e Lula decidiram encontrar-se novamente em 2003. Quando o fizeram, foi o maior encontro história entre os dois países. A lua de mel acabou poucos anos mais tarde, sufocada por desavenças profundas a respeito de Cuba, Honduras, Irã, Iraque e comércio internacional.
Hoje, durante uma nova transição presidencial, a relação atravessa um momento difícil. Nos corredores do poder em Washington ouve-se que o Brasil é um obstáculo a ser ignorado ou punido. Em Brasília, o cochicho em alguns gabinetes diz que não vale a pena apostar na relação com Washington devido à fraqueza política de Obama, à suposta hostilidade de Hillary Clinton em relação ao Brasil ou ao suposto declínio do poder americano.
Ambas as visões estão profundamente equivocadas. Um pouco de memória talvez possa ajudar.

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